UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE ARTES E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS O ESPAÇO – O SIMBÓLICO EM VERÃO NO AQUÁRIO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Nidia Moreira Früh Santa Maria, RS, Brasil 2005 O ESPAÇO – O SIMBÓLICO EM VERÃO NO AQUÁRIO por Nidia Moreira Früh Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Letras, Área de Concentração em Estudos Literários, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras. Orientador: Profª. Silvia Carneiro Lobato Paraense. Santa Maria, RS, Brasil 2005 Estendo minhas antenas e como um inseto subindo pelo áspero casco de uma árvore faço minha escolha e sigo meu caminho. É difícil. É duro. Mas já optei. Carrego comigo a alegria dessa opção. (Lygia Fagundes Telles) SUMÁRIO RESUMO............................................................................................................8 ABSTRACT .......................................................................................................9 INTRODUÇÃO.................................................................................................10 1. LYGIA FAGUNDES TELLES: OBRA E ESTRUTURAÇÃO NARRATIVA 1.1 A autora e a obra ..........................................................................................14 1.2 Os elementos estruturadores da narrativa ...................................................23 1.2.1 A narrativa .................................................................................................24 1.2.2 Os insetos na teia ......................................................................................29 1.2.3 O narrador .................................................................................................38 1.2.4 O tempo .....................................................................................................45 2. ESPAÇO: UM PERCURSO DA PAISAGEM À INTIMIDADE 2.1 Geografia literária: de paisagem a espaço psicológico ................................51 2.2 Espaços simbólicos ......................................................................................56 2.2.1 Bachelard: a imagem e a subjetividade .................................................... 56 2.2.2 Durand e a estrutura da imagem: os regimes diurno e noturno da imagem................................................................................................................58 3.O DESVELAMENTO ÍNTIMO ATRAVÉS DO ESPAÇO- SIMBÓLICO 3.1 O momento histórico-social dos anos 60 ......................................................65 3.2 Espaço simbólico em Verão no Aquário .......................................................67 3.2.1 A figuração do espaço em Verão no Aquário ............................................67 3.2.2 A casa da infância ......................................................................................71 3.2.2.1 O sítio do aconchego...............................................................................71 3.2.2.2 A mocinha do porão.................................................................................79 3.2.2.3 Entre deuses e demônios ........................................................................87 3.2.3 A casa na cidade: .......................................................................................92 3.2.3.1 O espaço materno....................................................................................99 3.2.4 André e o Casarão: .................................................................................105 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... .117 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................125 RESUMO Dissertação de Mestrado Programa de Pós-Graduação em Letras Universidade Federal de Santa Maria O ESPAÇO – O SIMBÓLICO EM VERÃO NO AQUÁRIO Autora: Nidia Moreira Früh Orientadora: Sílvia Carneiro Lobato Paraense Data e Local da Defesa: Santa Maria, de 2005. Em Verão no Aquário, o espaço, como é recorrente na obra de Lygia Fagundes Telles, desempenha papel importante na composição das personagens e da atmosfera que as rodeia. Através dele são ressaltados os aspectos de angústia, isolamento, aprisionamento e de conflituosos sentimentos represados que envolvem, de modo especial, a protagonista. No romance, o calor viscoso e o abafamento característicos do verão atuam sobre Raíza, construindo a sensação física, real de uma barreira – o Aquário, símbolo da opressão e do sem saída – que a imobiliza e isola, impedindo-a, assim, de aproximar-se da mãe. Em seu íntimo, misturam-se sentimentos desencontrados: amor, raiva, ciúme, e, num misto de devaneio e realidade, mergulha em si mesma, tentando elucidar a razão dos desencontrados sentimentos que nutre pela mãe, para assim, purificada, construir- se como indivíduo. ABSTRACT Dissertação de Mestrado Programa de Pós-Graduação em Letras Universidade Federal de Santa Maria THE SPACE – THE SYMBOLIC IN VERÃO NO AQUÁRIO Author: Nidia Moreira Früh Adviser: Sílvia Carneiro Lobato Paraense Date and Place of Presentation: Santa Maria, 03 de agosto de 2005. In Verão no Aquário, the space, a recurrent element in Lygia Fagundes Telles’ fiction, plays a significant role both in the characters’ composition and in the atmosphere that surrounds them. Through the space, aspects such as anxiety, isolation, imprisionment as well as the conflicting and repressed emotions that involve the protagonist are highlighted in a special way. In the novel, the sticky heat and the stifling feeling wich characterize Summer time affect Raíza, building up a pysical and a real sensation of a barrier – the Aquário, (fish bowe), symbol of oppression and absence of on exit. Those elements immobilize and seclude the protagonist, preventing her from approaching her mother. In her innermost side, opposing feelings clash: love, anger, jeaulousy. In a confusing state between daydream and reality, she plunges into herself, in a attempt of clarifying the reason for her mixed feelings towards the mother so that by emerging, she can construct herself as an individual. 10 INTRODUÇÃO O presente estudo, intitulado O Espaço – O Simbólico em Verão no Aquário, propõe-se a analisar a figuração do espaço no romance Verão no Aquário, de Lygia Fagundes Telles. Os aspectos privilegiados no estudo são: o modo de inserção desse componente narrativo no romance citado, o papel exercido por ele na caracterização das personagens, as relações que se estabelecem entre o simbólico, o espaço e as personagens. A partir da visão fenomenológica de Bachelard, segundo a qual o espaço é compreendido como um elemento que estabelece a dialética entre interior e exterior, como uma expressão da experiência, da afetividade transformada em imagens e como tal, em uma linguagem simbólica, pretende-se estudar de que maneira o mundo subjetivo se sobrepõe ao espaço objetivo no referido romance. O estudo apóia-se ainda nas idéias de Gilbert Durand, que defende a existência de uma estrutura profunda subjacente – o arquétipo – que transparece no uso das imagens utilizadas e dinamiza o efeito desse imaginário. O interesse pelo estudo do espaço justifica-se na mudança gradativa do papel desempenhado por ele na literatura: deixa de ser mero pano de fundo, referência geográfica, ou algo vago, indefinido, – era uma vez um reino encantado – para adquirir o “status” de elemento ambíguo, simbólico, podendo conter características atraentes e favoráveis ou perigosas e maléficas, ou seja, transforma-se em agente dentro da narrativa. É recorrente esse modo particular de utilização do espaço na obra de Lygia Fagundes Telles. As condições sócio-culturais da mulher, as conflitantes relações: homem/mulher, mãe/filha, tão caras a Lygia Telles, motivaram o contato com os textos da escritora. Apresenta ela grande habilidade em induzir suas personagens a mergulhar em si mesmas, em levá-las a defrontar-se com seus sentimentos inconfessados de amor, ódio, ciúmes, de cujos conflitos resulta, muitas vezes, uma situação de incomunicabilidade e isolamento. Chama ainda a atenção, no contexto narrativo da autora, o tratamento dado ao espaço: este funciona como índice metafórico e como instrumento revelador da atmosfera que rodeia suas criaturas. 11 Lugares, objetos, roupas, cheiros, sensações são indícios e pistas que permitem conhecer a subjetividade da personagem e descobrir a provável origem deste ou daquele comportamento, resultando o espaço em um fator de composição da mesma. Este modo de inserção do espaço nas narrativas de Lygia Telles, e a inter- relação que ele estabelece com o simbólico foram os fatores deflagradores deste estudo. Esta dissertação compreende três grandes capítulos: o primeiro deles trata da obra de Lygia Telles e do tratamento particular dado pela autora aos elementos da narrativa no romance em análise. O segundo é dedicado ao estudo da gradativa valorização do espaço na literatura, sua estrutura simbólica e a inter-relação espaço/imaginário, destacando-se nele a analogia estabelecida por Gaston Bachelard entre a casa (espaço vivido) e as estruturas do inconsciente. Este estudo completa-se com a análise do percurso antropológico realizado por essas estruturas imaginárias, segundo Gilbert Durand. O terceiro capítulo organiza-se em três unidades: a primeira trata do contexto social dos anos 60, período de ambientação e publicação do texto a ser analisado e da possível interligação entre o conturbado ambiente social e o tipo de sujeito que dele emerge. A segunda parte, representada pela análise espacial, enfoca o entrecruzamento do espaço externo, físico e social, com o espaço ficcional, simbólico, interno, representado pela casa. Neste segmento, analisa-se a atuação do espaço na composição, na revelação das personagens e das mudanças ocorridas na estrutura sócio-familiar burguesa. Como corpus teórico utilizou-se os textos A Poética do Espaço, de Gaston Bachelard, segundo o qual a casa é um espaço experienciado, no qual o ser se aloja, ao mesmo tempo em que esse espaço se aloja no ser. Cabendo a ela as funções de proteção e agregação do ser, “há um sentido em tomar a casa como um instrumento de análise para a [subjetividade da personagem ficcional]”1 e para o movimento de vaivém que se estabelece entre o exterior e a intimidade. 1 BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.20. 12 O estudo das imagens poéticas é complementado com o texto As Estruturas Antropológicas do Imaginário, de Gilbert Durand2. De acordo com o autor, todo pensamento tem uma estrutura simbólica, e é dessa perspectiva simbólica que o filósofo estuda os “arquétipos fundamentais da imaginação”3 os quais estão ligados a imagens: os símbolos. Estes podem assumir diferentes sentidos, segundo a cultura em que estão inscritos. Por esta razão Durand denomina de trajeto antropológico o processo de formação dos símbolos. Defende ainda a existência de relações muito próximas entre os gestos do corpo, os centros nervosos, e as representações simbólicas. Estas representações, obedecendo a um processo mental lógico-simbólico, localizam-se em classes motivantes segundo os centros de interesse do pensamento do poeta. Para a análise da personagem que se escreve e se revela através do espaço, foi selecionado o romance Verão no Aquário, de Lygia Fagundes Telles. Optou-se por este texto por ter sido ele publicado na década de 60, anos de intensos movimentos sociais e profundas mudanças na estrutura familiar e no papel sócio-cultural da mulher. 2 DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo, 2001. 3 Ibidem, p. 31. 13 1. LYGIA FAGUNDES TELLES: OBRA E ESTRUTURAÇÃO NARRATIVA 14 1.1 A autora e a obra A literatura é uma prova de amor, mais do que uma prova de resistência ao passar do tempo. (Lygia F. Telles) Lygia Fagundes Telles nasceu em São Paulo, formou-se em Educação Física e Direito; na Escola Superior do Largo de São Francisco. Seu pai – Durval de Azevedo Fagundes – era delegado e promotor público, tendo trabalhado em pequenas cidades do interior paulista, como Sertãozinho, Assis, Apiaí ou Descalvado. Das freqüentes mudanças, diz ela, lembra-se “dos cacarecos [...] principalmente de um penico azul, um fogareiro a álcool e de um piano com grandes castiçais dourados, onde sua mãe tocava”4. Da sua infância a escritora destaca um certo ar selvagem, a liberdade e a abundância de verde, cor bastante presente em suas narrativas. A inspiração para seus primeiros escritos veio do contato com o reino do fantasmagórico, das almas penadas, das assombrações, proporcionado pelas histórias de Dona Maricota, uma pajem. Escrever era também um modo de lidar com os sentimentos de medo e atração que esses assuntos despertavam nela. Lygia Fagundes Telles estréia na literatura com Praia Viva, um livro de contos, considerado por ela como “um modo de experimentar as asas”5. Seu nome aparece ligado à chamada Geração de 45 – grupo de escritores que começa a publicar em meados da década de 40 e cuja produção tanto se volta para a exploração de processos da linguagem como para um compromisso com a representação da realidade (neo-realismo), – da qual fazem parte escritores como Guimarães Rosa, José Cândido de Carvalho e Mário Palmério. Lygia Telles, assim como Clarice Lispector, afinada com o ambiente cultural da época, que sofria a influência do Existencialismo, dá a sua obra um rumo diferente: cultiva o romance urbano de enfoque intimista. Interessa-se “pelos aspectos psicológicos e afetivos das pessoas/personagens”6 bem como pela gama de sentimentos suscitados no 4 MONTEIRO, Leonardo. Lygia Fagundes Telles: Literatura Comentada. São Paulo: Abril Educação, 1980. p. 3. 5 Idem, p. 4. 6 Idem, p. 103. 15 indivíduo pela vida moderna. Utilizando o exterior – lugares, objetos, roupas, cheiros, sensações – desvenda o interior de suas criaturas. Segundo Cristina Ferreira Pinto, Lispector vale-se de metáforas, de sinestesias, repetições, elipses, para construir “uma narrativa onde as imagens visuais, tácteis e olfativas se concatenam de uma maneira quase cubista, determinada pela memória da personagem”7 De acordo com Pinto, embora Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles se aproximem na temática, o modo como a expressam difere: “enquanto Lispector parece ser “mais voltada para dentro”, expressando-se e expressando a realidade de uma maneira mais interiorizada, Fagundes Telles é “voltada para fora”, enérgica, reveladora”8. Assim, a escrita de Clarice Lispector é fluida, elíptica, experimental; a de Lygia Telles, mais clara e direta, para alguns críticos, menos inovadora. Quatro são os romances de Lygia Fagundes Telles: Ciranda de Pedra (1955), Verão no Aquário (1963), As Meninas (1983) e As Horas Nuas (1989). Ciranda de Pedra o primeiro deles, já delineia a temática que seria uma constante na obra da escritora: o indivíduo solitário que se interroga sobre o sentido de sua existência e a dos outros, aprisionado num mundo convencional em crise. A personagem Virgínia – menina sensível e rebelde – e seu desejo de romper a ciranda de pedra formada pelos anões do jardim, representa a tentativa dos seres humanos para serem aceitos como integrantes do meio em que vivem e de vencerem a barreira de incomunicabilidade que os isola e angustia. Verão no Aquário, o segundo de seus romances, foi publicado em 1963. Nele a autora debruça-se sobre uma personagem recorrente em sua obra: uma jovem brasileira de classe média, com bom nível cultural, vivendo as contradições do mundo e os conflitos da adolescência, rumo à sua construção identitária. As Meninas, o terceiro de seus romances, publicado em 1973, retrata a vida de três universitárias – Lorena, Maria Clara e Lião – que se revezam como narradoras. Cada uma das personagens dá sua visão à realidade vivida por elas, enfocando temas como a militância política e o desatino das drogas. As Horas Nuas, o quarto romance, publicado em 1989, conta a vida de Rosa Ambrósio, uma atriz decadente – física e profissionalmente – que, ao pretender 7 PINTO, Cristina Ferreira. O Bildungsroman Feminino: Quatro Exemplos Brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1990. p. 82. 16 escrever suas memórias, faz um exame das atitudes que a levaram ao alcoolismo e à solidão. A inovação do texto fica por conta do processo de humanização sofrida por Rahul, o gato de Rosa Ambrósio, o que permite a ele ter memória e criatividade. Rahul divide, através dos seus pensamentos, o foco narrativo com a protagonista: conta reminiscências de vidas passadas, vislumbra fantasmas de pessoas já falecidas que circulam pelo apartamento e dá sua visão de tudo o que acontece na casa de Rosona (como chama sua dona). Esse romance tem também elementos de romance policial: o misterioso desaparecimento da personagem Ananta Medrado, que fica sem esclarecimento. Estudando-se a produção romanesca da autora, percebe-se uma certa regularidade entre a publicação do primeiro para o segundo romance e deste para os seguintes: um período de cerca de 10 anos separa cada um deles. Analisando- se as protagonistas de seus romances, poder-se-ia supor tratarem eles dos vários estágios da vida de uma mesma heroína: infância, em Ciranda de Pedra; adolescência, em Verão no Aquário (ambas, Virgínia e Raíza, têm, inicialmente, as mesmas opções profissionais – professora de piano e tradutora, a mesma preocupação com as unhas), a seguir o período universitário, em As Meninas; e a maturidade, em As Horas Nuas. Percebe-se em todas elas a mesma aguda sensação de rejeição, a mesma insegurança e incapacidade de quebrar as barreiras que as impedem de relacionar-se satisfatoriamente com os seres que as rodeiam, o que acaba por torná-las prisioneiras de si próprias. A narrativa curta, representada pelos contos, avulta na obra de Lygia Telles. Neles a escritora trata dos tormentos naturais da alma humana, vasculhando suas entranhas e as experiências suscitadas pelo amor, pela saudade, pela culpa, pelo medo e pela fé. Seus últimos livros de contos foram: A Noite Escura Mais Eu, lançado em 1998, em que o ceticismo da mulher madura e a sua capacidade de reação é um dos temas enfocados; Invenção e Memória, publicado em 2000, em que ficção e fragmentos de suas lembranças se misturam na evocação de cenas da infância e da adolescência; Meus Contos Preferidos, antologia lançada na Bienal do Livro de São Paulo, em 2004 que, como declarou sua autora, são os contos do seu coração, os preferidos de cada livro publicado anteriormente. O mais recente 8 Idem, p. 112. 17 dos seus livros, uma antologia de contos, é Meus Contos Esquecidos, publicado em 2005, com histórias que “estavam na penumbra há muito tempo”, afirmou a ficcionista. A obra de Lygia Telles é enfocada pela crítica sob dois aspectos principais: a análise da sua técnica narrativa e de sua temática. No aspecto técnico, chama a atenção dos críticos a preocupação da autora com a perfeição da palavra. Em razão disto, revisa, reelabora, a cada nova edição, os seus textos. Inquirida sobre esse assunto, a escritora declara: “o autor tem o direito de alterar seus escritos de edição para edição. [...] Não os altero na estrutura ou na essência, mas me debruço sobre as palavras”9. Vicente de Paula Ataíde10, em sua análise, define a escritora como uma crítica rigorosa dos seus trabalhos. Isto é percebido na constante vigilância que Lygia Telles exerce sobre o seu modo de dizer as coisas, na busca da palavra exata para traduzir o que pretende transmitir ao seu público. Esta preocupação é sentida, segundo Ataíde, desde a estruturação simples, natural e espontânea que procura dar a seus períodos bem como na adaptação do vocabulário a cada uma de suas personagens, chegando até a modulação da fala das mesmas: usa tons mais agudos (mais elevados) ou tons mais graves (mais baixos) para indicar o estado de tensão em que as personagens se encontram. Com essa acurada revisão, de acordo com Bella Josefa11 escritora utiliza uma linguagem diacrônica, sintonizada com o hoje pela eliminação de expressões não mais utilizadas no meio social em que sua personagem se insere. Com esse procedimento refina a caracterização das personagens, melhora a economia e objetividade dos seus textos, aumentando a carga emocional neles contida. No universo ficcional da autora, outro aspecto técnico que tem sido destacado pelos críticos é a sua maneira de caracterizar as personagens. Voltada para o psicológico, para o mundo interior de suas criaturas, a escritora raramente as 9 COELHO, Nely Novais. Seleta. Rio de Janeiro: José Olympo/Instituto do Livro, 1971. p. XIII. 10 ATAÍDE, Vicente de Paula. A Narrativa de Lygia Fagundes Telles. In: A Narrativa de Ficção. São Paulo: McGrawhill do Brasil Ltda, 1974. 11 JOSEF, Bella. Antes do Baile Verde. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1971, contra-capa. 18 descreve fisicamente. A caracterização das protagonistas é feita diretamente pelas ações, palavras e pensamentos das próprias personagens, ou ainda através de pequenos tiques repetidos por elas – o apertar os olhos, a contração dos lábios, como Tia Graciana (Verão no Aquário): “o labiozinho curto teve uma contração graciosa”12, o roer/cuidar (d)as unhas como Virgínia (Ciranda de Pedra), Lia (As Meninas) e Raíza (Verão no Aquário), respectivamente. Bichos, objetos e particularidades físicas (cabelos, pele, voz, mãos) são utilizados como “índices metafóricos”13 e têm a função de revelar algo importante para a narrativa, comportando-se também, muitas vezes, como fator de revelação da ação que se desencadeará a seguir. O problema crucial das personagens de Lygia Telles, afirma Guillermo de La Cruz Coronado14 é uma certa incapacidade de comunicação, do que resulta sua tendência em fechar-se, em isolar-se. A partir da incomunicabilidade cria-se a sensação de opressão e angústia que emana das obras da escritora. O indivíduo retratado por Telles é um ser comprimido, conformado pelo espaço restrito, tanto social quanto físico em que vive; pois: circula sempre no mesmo grupo social. Além disso, estão praticamente ausentes dos textos a paisagem e os espaços abertos. O autor observa também que grande parte das personagens se locomovem em espaços reduzidos – quartos de pensionato (As Meninas); o “mundo silencioso e escuro” (p. 27) do quartinho de Tia Graciana, a saleta da mãe, o sótão do pai e do tio (Verão no Aquário). O olhar que as personagens lançam ao exterior, sua apreensão do mundo é sempre restrita, medida e mediada pelo vão da janela, que as protege, ao mesmo tempo em que as separa, afasta-as da vida, aprisionando-as na casa, em si próprias e, simbolicamente, no espelho, no aquário. A limitação espacial, afirma Coronado, tem como conseqüência os gestos esboçados, cautelosos, inacabados – “contive-me para não correr a abraçá-la” (p. 204), completando-se na “preferência pelas cores tímidas – (...) o rosa, o lilás, o azul- claro, o verde-água” (p. 106). 12 TELLES, Lygia Fagundes. Verão no Aquário. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Todas as citações desta obra serão indicadas pelo número da página logo após a citação. 13 COELHO, Nely Novais. Op. cit. nota 9, p. 38. 14 LA CRUZ CORONADO, Guillermo de. Lygia e a Condição Humana. In: Letras de Hoje. Porto Alegre: PUCRS, v. 22, nº 1, mar. 1987. p. 46. 19 Suas protagonistas formam uma tessitura inteiriça com o enredo, observa Kátia de Oliveira – “a personagem dá corpo ao enredo, [este] dá a estruturação psicológica individual”15 – e evoluem a partir dos fatos que vivenciam; as personagens secundárias, diferentemente, mantêm padrões estáveis e podem ser (re)encontradas, com leves variações, em outros textos. Entre essas se encontram figuras como a empregada alemã – Frau Herta – (Ciranda de Pedra); a tia solteirona, às voltas com chás, essências – Tia Graciana – (Verão no Aquário); ou que desvenda o futuro nas cartas do baralho – Tia Clotilde – do conto Herbarium (Seminário dos Ratos). Estas reagem da mesma maneira diante dos fatos, são personagens estáticas. Vera Maria Tietzmann da Silva em sua análise do romance As Horas Nuas, no qual busca elucidar “a rede intertextual que Lygia [...] escondeu nos refolhos de sua narrativa”16, afirma ser a tendência à reiteração uma característica inerente à escrita de Lygia Telles. A reprise de personagens, temas e situações, a recombinação de ingredientes narrativos, faz dos seus textos um jogo, [...] um quebra-cabeças, cujas peças o leitor, familiarizado com as narrativas da autora, encontra nas alusões claras ou veladas a outros romances ou contos. Analisando-se a obra de Lygia Telles, observa-se que espaço e protagonista parecem formar uma entidade única, em que um se projeta sobre o outro, como um jogo de espelho/imagens: a personagem transfere sua maneira de ser, seus sentimentos, para os objetos. Estes, quando olhados, revelam o ser que os habita, como em: “[...] uma porrada de coisas [...] coisas que nem sabia que eu tinha e que só vejo agora, justo agora, que está escuro (final do dia/começo da noite – velhice/ fim da vida/proximidade da morte, a escuridão). É que fomos escurecendo (envelhecendo) juntas a sala e eu. Uma sala/uma mulher de uma burrice atroz, afetada, pretensiosa. E sobretudo rica, exorbitando de riqueza”17 No fragmento percebe-se que a visão dos objetos e do ambiente/da sala confunde-se com a auto- imagem da personagem. Esta gama de elementos que vão se juntando ao redor da 15 OLIVEIRA, Kátia. A Técnica Narrativa em Lygia Fagundes Telles. Porto Alegre: UFGRS, 1972: col. Cadernos Universitários. p.33. 16 SILVA, Vera Maria Tietzmann da. A Ficção Intertextual de Lygia Fagundes Telles. Goiânia: CEGRAF/UFG, 1992. (Textos para Discussão, 15). p. 31. 17 TELLES, Lygia Fagundes. Apenas um Saxofone. In: Antes do Baile Verde. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1971. p. 20. 20 situação contada como ondas formadas a partir da pedra jogada na água, em que cada um dos elementos é, ao mesmo tempo, objeto e imagem, uma das características da narrativa de Lygia Telles. É esta técnica de narrar que, segundo Vicente de Paula Ataíde, forma o arcabouço da atmosfera emocional que envolve as narrativas que o estudioso define como “uma das criações mais felizes da escritora”18. A temática, segundo os críticos, tem duas características, principalmente nos seus romances: a vida nos grandes centros urbanos e a condição feminina. A primeira está relacionada à vida nas grandes cidades – o ser rodeado externamente pela multidão das ruas e invadido intimamente pela solidão – e aos problemas familiares e sociais que afligem os membros da arruinada elite cafeeira paulista, “cujos descendentes já não têm norte”19, os novos ricos, a classe média emergente da crescente industrialização dos anos 50. Através das personagens, revela-se a crise que a família enfrenta enquanto instituição, deixando transparecer uma face da sociedade dos anos 60 – 70: seus costumes, na dinâmica da aceitação ou recusa, os problemas desse período – desestruturação familiar, dissolução dos costumes –, como em Ciranda de Pedra; o conflito pais/filhos, a luta pela maturidade, presente em Verão no Aquário; a militância política, as drogas, como em As Meninas. O segundo enfoque temático é a problemática feminina, sendo uma das características da obra de Telles a criação de grupos familiares identificados como “comunidades femininas”20 – núcleos formados por mulheres que substituem a família patriarcal e que é observado, dentre outros, nos contos As Cerejas e Herbarium. Através desses núcleos, Lygia Telles explora a psicologia feminina a partir de um ponto de vista feminino, o que permite que se percebam algumas reivindicações feministas. Estas são sentidas de modo acentuado em A Disciplina do Amor, livro de contos publicado em 1980. Fugindo das duas linhas temáticas anteriores, a escritora envereda pelo insólito, definido por Fábio Lucas, ao estudar a obra de Lygia Telles, como “o 18 ATAÍDE. Op. cit. nota 10. p. 108. 19 BOSI, ALFREDO. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2000. p. 420. 20 CAVALCANTE, Ilane Ferreira. Relações Familiares em Verão no Aquário e As Meninas de Lygia Fagundes Telles. 21 trânsito entre a experiência e o sonho, a realidade e a fantasia”21. Consegue assim transformar o mundo em mistério e produto de magia, vencer o desencanto com o cientificismo e com os seres humanos. Através dele, diz o estudioso de Telles, reencontra um mundo edênico. São recuperadas ainda as vivências do mundo de assombrações das histórias da infância, o que leva à descoberta de uma forma de lidar com o medo do tempo e da morte. É preferencialmente nos contos que a autora explora o território da magia, mas também presente em seu último romance – As Horas Nuas. Aparece com o gato Rahul que recorda episódios de suas vidas anteriores e no romance entre a psicóloga Ananta Medrado e um ser misterioso, o cavalo, que reside no apartamento acima do dela. Vários dos contos com essa temática estão reunidos no livro Seminário dos Ratos, apresentando em comum a atmosfera de pesadelo, de situação de perigo iminente e o fato de representar a oportunidade de encarar, em um plano metafísico, verdades dolorosas, sobretudo a morte. Verão no Aquário, o objeto de estudo desta dissertação, é analisado pela crítica sob dois enfoques principais: o percurso individual e o social. Nelly Novais Coelho22 o caracteriza como o texto em que a problemática existencial é depurada em seu nível mais intenso, tanto temática quanto estilisticamente. A estudiosa considera esse romance um marco diferencial na carreira da escritora pois, a partir dele, o traço mórbido, característico em sua obra até esse momento e que lhe valeu um certo rechaço por parte dos professores de literatura, se atenua, se dramatiza. Além disso, a autora se desvincula do compromisso de transmitir uma mensagem, preocupação bastante presente na primeira fase de sua obra. Mas mantém nesse romance a mesma atmosfera de calor viscoso e opressivo que envolve suas personagens num ambiente de estufa, possibilitando o desenvolvimento de germes que degradam e corrompem. Estes são presentificados na exacerbação da vida animal, sensorial e sexual, compensatória da angústia provocada pela não aceitação de si mesmas e da ausência de valores transcendentes, segundo Coelho. In: Gênero e Representação na Literatura Brasileira: ensaios. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 236. 21 LUCAS, Fábio. Mistério e Magia. In: Antes do Baile Verde. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1971. p. XIII. 22 COELHO, Nely Novais. O Mundo de Ficção de Lygia Fagundes Telles. In: O Ensino da Literatura. São Paulo: FTD 1966. p. 478 – 487. 22 Henrique M. Ávila23, em sua análise sobre o romance brasileiro produzido na década de 60, referindo-se a Verão no Aquário diz sentir o texto de Lygia como um processo de libertação humana. Dele destaca o simbolismo da flor, motivo recorrente no romance. Esta, segundo ele, representa uma promessa e uma possibilidade apontada para a nova posição familiar e social da mulher, simbologia que contém em si um impulso para um futuro fora do binômio social mãe/esposa, representado pelo movimento cíclico, sem perspectivas, do aquário. Ilane Cavalcante24 também analisa Verão no Aquário como possibilidade de vislumbrar esse momento de definição do papel da mulher dentro da sociedade do pós–guerra, momento marcado pela transformação, pelas novas formas de consumo e necessidades e pelas novas relações entre os sexos, em que o homem não tem mais o poder determinante. Conforme a estudiosa, o romance retrata um processo de aprendizagem e de busca de convivência equilibrada com a nova visão da mulher como indivíduo e como ser social. Romance de formação, é como alguns críticos classificam narrativas como Ciranda de Pedra e Verão no Aquário que têm como tema o percurso desenvolvido pela personagem para sua auto-realização, para a concretização da sua verdade interior. O seu aperfeiçoamento só não é pleno, segundo os críticos, porque as heroínas de Lygia circulam em um ambiente muito restrito. Mantêm a mesma teia de relações do começo ao fim da narrativa, não se afastam do meio do qual se origina seu sofrimento – a ciranda/o aquário/a família. Esta restrição espacial tem um efeito limitante sobre o horizonte vislumbrado pela personagem e dá um acento de frustração à solução de vida encontrada por ela, frente à intensidade das experiências que vivenciou. Frustração que acaba por estender-se ao leitor, que espera ansiosamente que a personagem seja capaz de, num lance mágico, romper com o círculo vicioso que a envolve. A expectativa não concretizada parece ser um recurso utilizado pela escritora para demonstrar que todo ser humano, em maior ou em menor grau, tem desejos que precisaram ser guardados, modificados para fazer frente ao cotidiano, no qual a objetividade da razão e a força 23 ÁVILA, Henrique Manoel. Da Urgência à Aprendizagem: Sentido da História e Romance Brasileiro dos Anos 60. Londrina: UEL, 1997. 24 CAVALCANTE, Ilane Ferreira. Op. cit. nota 20. p. 236. 23 do meio e/ou a fatalidade do destino parecem impor-se sobre a grandiosidade do sonho. Estudando-se a obra de Lygia Fagundes Telles e analisando-se a crítica percebe-se ser a personagem o centro para o qual todos os outros elementos do texto convergem, seja para construí-la, seja para refleti-la. A personagem é a força que move, quase sempre lentamente, o desenrolar do texto, impregnando o ambiente com seus pensamentos e sentimentos. Essa força leva o leitor a participar do seu universo, vivenciando profundamente a atmosfera sufocante e angustiosa que a envolve. 1.2 Os elementos estruturadores da narrativa O texto literário exige [...] a idéia, a trama e as personagens. (A Cândido) A idéia é a aranha, tece a teia, tece a casa – o enredo, a trama –. As personagens [...] são os insetos que caem na teia, a aranha vem e NHAC!, suga e tal, depois solta. (Lygia F. Telles). A sociedade moderna caracteriza-se por um processo de personalização do qual emerge um indivíduo voltado para a satisfação pessoal, frágil, inseguro e fechado em si mesmo. Sentindo-se vazio e insatisfeito, este ser “com jeito de passarinhos empalhados [...], tão tristes, fingindo [...] que há vida onde a vida acabou” (p.40), não descobrindo sentido para sua existência, busca no prazer e na satisfação dos sentidos um modo de atordoar-se, de amenizar aflições e carências. A situação desordenada advinda deste comportamento é experimentada pela protagonista de Verão no Aquário, cuja vida, marcada pelo tédio e pela falta de objetivo, leva-a ao insulamento e à autodestruição. O fragmento do texto de Enrique López Castellón em que caracteriza o dandi encarnado por Baudelaire, parece traçar o perfil do indivíduo no mundo moderno. Castellón afirma que este, 24 reveste sua espantosa solidão com o distanciamento precavido e prudente, disfarça sua sede de carinho com a máscara da frieza e estende, entre ele e os demais, uma terra de ninguém intransponível para que não se conheçam as feridas de sua alma25. Do fragmento se depreende que o homem moderno se disfarça, adequa as próprias necessidades, às expectativas do meio social em que vive. Tal caracterização pode ser justaposta ao perfil da heroína Raíza, de Verão no Aquário, cuja atitude de fingimento é repetidamente mencionada ao longo da narrativa. 1.2.1 A Narrativa O romance de Lygia Telles é constituído de 15 capítulos, sem títulos. A expressão esquemática da massa narrativa aponta para: um equilíbrio inicial, representado pelo período anterior ao sonho com o pai (fator de choque que leva ao auto-exame). A visão do face paterna substituída por uma flor provoca o desequilíbrio, que gera um impulso no sentido da retomada do equilíbrio, não igual ao inicial. Tzvetan Todorov, em seu estudo sobre a narrativa, afirma que esta se desenvolve a partir da combinação de vários elementos segundo um modelo mais ou menos estável. Evidencia nele as estruturas sobre as quais a narrativa é construída, estabelecendo especialmente a tipologia das intrigas. Em sua análise, o estudioso afirma que esta estrutura pode ser apresentada como “a passagem de um equilíbrio a outro”26, diferente do primeiro, entendendo-se como equilíbrio uma relação estável e dinâmica, ou seja, um sistema particular de trocas entre os membros de determinado segmento ou meio. Conforme o modelo por ele proposto, entre o estado inicial [EI] e o final [EF] tem-se um período de desequilíbrio composto de um processo de degradação [De] e um de ascensão [As]. A afirmativa de Todorov remete ao esquema quinário proposto por Propp em Morfologia do Conto, o qual seria comum a todas as narrativas. Este obedeceria ao esquema: estado inicial [EI] – transformação (composta por: 25 CASTELLÓN, Enrique López. In. Baudelaire o La Dolorosa Complejidade de La Moral, prefácio para Baudelaire, Charles. Las Flores del Mal. Madrid: Edimat, 1999. p. 35. “Reviste su espantosa soledad con el distanciamiento precavido y prudente, enmascara su sed de cariño con el antifaz de la frialdad y extiende entre él y los demás una tierra de nadie infranqueable para que no puedan ser conocidas las llagas de su alma”. 26 TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 88. 25 complicação [C] ou força perturbadora [FP] + Dinâmica [D] + resolução [R] ou força equilibradora [FE]) – estado final [EF]. Comparando-se os esquemas propostos por Propp e Todorov tem-se: Propp: [EI] – Transformação – [EF] Todorov: [EI] – Desequilíbrio – [EF [[C] +[D] + [R]] [[De] + [As]] A partir dos esquemas propostos, percebe-se que, o período da transformação de Propp corresponde ao do desequilíbrio em Todorov, e é nele que a história se desenrola. Logo, é a desestabilização do estado inicial que desencadeia uma série de acontecimentos que têm por objetivo restaurar a estabilidade perdida. Em Verão no Aquário, o sonho de Raíza com o pai já falecido desperta suas lembranças da infância, traz à tona dores adormecidas, evidenciando a sua fragilidade (o desequilíbrio). Retomando o esquema proposto por Todorov, tem-se nos capítulos I a VII o processo de degradação da personagem e nos capítulos VIII a XV a (re)construção da estabilidade perdida. Na primeira fase do processo, a protagonista percebe-se encerrada em um labirinto que, à semelhança de um sorvedouro vertiginoso, arrasta-a para o inferno, para o caos e para a desagregação. Sua prisão é simbolizada pelo aquário com seus peixes que nadam em círculos, sem objetivo, sem alcançar lugar algum. Esse período é preenchido por ela com os amores cíclicos, dentre os quais são mencionados: um João Afonso, um Fabrízio, um Diogo, além de outros ainda mais ocasionais, Eduardo e Rodolfo. É um tempo de festas sucessivas, nas quais busca aplacar, com o prazer, a inquietude e a sensação de solidão que sente. Osman Lins27 observa que na aglomeração – e a festa é considerada pelo autor como um tipo aglomeração – o indivíduo perde a identidade, dissolve-se, tem uma ilusão de encontro e de ausência de preocupações existenciais. Lins compara o percorrer festas ao giro labiríntico, sem saída, exercido pelas forças do destino que se abatem sobre o homem, esmagando-o e impedindo sua evolução espiritual. O ritmo da narração nesse primeiro momento do romance parece acompanhar o giro da personagem: acumulam-se aqui as informações sobre o 27 LINS, Osman. Lima Barreto e o Espaço Romanesco. São Paulo: Ática, 1976. 26 passado de Raíza, os detalhes que explicam o modo como se relacionava com o pai e a tensão existente em seu relacionamento com a mãe, a história de seus avós, seus pesadelos e devaneios que, gradativamente, envolvem o leitor no clima de angústia e aprisionamento vivido pela personagem. O descompromisso com a linearidade temporal do relato em fluxo de consciência, deslocando a narração ora para o presente, ora para o passado da personagem, ora ainda para os seus sonhos e pensamentos, intensifica a idéia de movimento, de deslocamento circular, o que reforça a sensação de impotência, de quase impossibilidade para romper com o isolamento em que vive a abúlica Raíza, cuja intensa atividade interior não encontra tradução no mundo exterior. A apresentação que a personagem faz de si própria – “sou de natureza contemplativa, [...] uma criatura que é capaz de ficar horas e horas contemplando duas moscas, um cravo murcho, uma réstia de sol” (p.26) –, parece confirmar isso. A imobilidade externa parece ser compensada pela atividade do pensamento, através do qual viaja do presente para o passado e vice- versa. A ressaca, estado característico do pós-festa, a depressão, as promessas de regeneração sempre esquecidas e o calor intenso são os elementos que colaboram para intensificar esta sensação de peso, de cansaço e adinamia que caracteriza esse período da vida de Raíza. A segunda parte do relato, formada pelos capítulos restantes, narra o duro e lento movimento de subida, libertação e (re)construção do eu experienciado pela jovem protagonista. O início desse percurso é assim caracterizado por ela: “estou na metamorfose” (p. 115). Seu caminho é marcado por freqüentes recaídas, representado pela personagem como “uma linha interrompida, uma longa linha pontilhada, [na qual] falta o traço final como arremate para unir os pontos” (p. 113). Para alcançar este objetivo, Raíza abandona a vida de festas, deixa de fumar, fecha-se em um casulo de onde espera sair transformada em um ser diferente, casto. O fio que une os dois segmentos é a busca de afeto: da mãe, do homem idealizado. Através do amor, Raíza espera obter a serenidade e a segurança que lhe faltam. O final de cada uma das partes da narrativa e das etapas de vida da personagem é marcado pela ocorrência de uma tempestade e pela morte de uma 27 das figuras masculinas importantes em cada uma das fases – primeiramente a do pai e no final a de André. A lembrança da morte do pai em uma noite de tempestade, logo após o jantar em que a protagonista tenta, sem sucesso, separar as letrinhas da sopa para formar o nome GIANCARLO, encerra a primeira parte da narrativa. Raíza pressente a morte do pai quando percebe que a fonte existente no jardim havia secado: “quando cheguei junto das pedras vi que o débil fiozinho d’água tinha desaparecido [...] tive então a certeza de que meu pai ia morrer assim como a fonte, silenciosamente” (p. 44). O falecimento do pai, associado à tempestade, lembra um rito de passagem: da infância à adolescência. O suicídio de André, que corta os pulsos após o áspero ato de posse vivido com Raíza, durante uma noite de tempestade, sinaliza o final do período de (re)construção de Raíza. O fato representa a força equilibradora, libertando-a dos contraditórios sentimentos que nutria em relação à mãe – um misto de desejo de suplantá-la, amor e ciúme. O trágico desenlace permite sua reconciliação com Patrícia, possibilitando o início de uma vida nova. O final de cada uma das etapas é construído como a imagem invertida no espelho: na primeira parte, o lento desaparecimento da fonte do jardim anuncia, silenciosamente, o desfecho – a morte de Giancarlo – que se consuma durante a tempestade que desaba repentinamente. Na segunda parte, a iminência de uma tempestade é referida várias vezes por Raíza, num adensamento lento, um misto de prenúncio e de preparação do trágico acontecimento: este processo é caracterizado, inicialmente, como uma conspiração das nuvens contra o sol, fechando “o círculo em torno dele” (p. 179). A seguir, ela é noticiada a Raíza pelo vento: “senti o cheiro da tempestade aproximando-se embuçada, se o vento não gemesse tanto podia até ouvir-lhe os passos” (p. 180). Até que “um raio estourou próximo” (p. 181) e então, “as nuvens fechavam-se como um muro” (p.191). A tempestade anuncia a decisão, a preparação passo-a-passo do ritual do sacrifício. Na primeira parte, a morte parece estar ligada ao lento adormecer das forças terrestres, simbolizadas na água que se recolhe ao seu leito subterrâneo, do qual 28 Raíza tenta, ansiosamente, ouvir o murmúrio: encosta “a face no chão na esperança de ouvir [...] a água correndo nas profundezas, perdida lá no escuro” (p. 45). Este fenômeno junta-se ao movimento de descida, da queda que caracteriza toda a primeira parte da narrativa. O prenúncio da morte ligado a elementos da natureza é recorrente na obra de Lygia Telles, sendo observado em contos como Venha ver o pôr do sol (Antes do Baile Verde), ou A Sauna (Seminário dos Ratos), cujo fragmento serve como exemplo: Ele lidava com suas plantas, esse tio mudo. Quando Rosa aproximou-se, [...] lhe mostrou uma raiz morta que acabara de desencavar. [...] Depois, ele fechou os dedos em redor da raiz que ainda segurava e dedos e raiz, ficou tudo uma coisa só (p.43). A raiz arrancada da terra (sua casa, sua fonte de nutrientes), seca. O homem, como a raiz, ao ser obrigado a abrir mão de sua casa (sua família, seu abrigo), perde a energia que o sustenta e morre. Ao se encontrarem, homem e raiz integram-se na condição de seres sem vida. Também a idéia de que conservar determinados objetos, retê-los, escondê- los, é uma maneira de impedir e/ou adiar a morte, pode ser observada em outros dos seus textos. Assim, Raíza tenta salvar a fonte para preservar a vida de seu pai; a protagonista de Herbarium (Oito Contos de Amor), esconde a folha em “forma aguda de foice, [...] com pintas vermelhas irregulares como pingos de sangue” – que encontrou, para impedir que o primo doente parta com “a mulher de cabelos compridos, com reflexos de cobre”. Na segunda parte do romance, a morte é um evento aéreo: é representada como uma sublevação de elementos celestes que, irados, descarregam suas forças sobre um dos seus filhos, exigindo dele o sacrifício de sangue. É um ritual ligado às cerimônias de purificação, separação, partícipe do movimento de subida executado pela protagonista nesta fase, libertando-a das forças que a prendiam à terra. Assim, Raíza (re)adquire o equilíbrio perdido, mas é agora um ser diferente, com uma nova percepção de si própria e dos que a rodeiam. Assim, conclui-se que a narrativa de Verão no Aquário, estrutura-se conforme o esquema proposto por Todorov: EI – Desequilíbrio – EF. O choque 29 inicial ‘quebra’ a inércia em que Raíza vivia (desequilíbrio), provocando o movimento de ‘descida’ ao passado e à descoberta das causas do seu estado atual. A recuperação de acontecimentos marcantes guardados no inconsciente, e o (re)viver das sensações experienciadas em decorrência deles, provoca em Raíza a impressão de queda, de descida ao inferno (período de degradação). Tendo alcançado o ‘fundo’ de si própria – o caos – e tomado consciência dos fatos que escondia, a personagem pode, então, ‘retornar’ ao mundo sensível (ascensão) e (re)construir o equilíbrio perdido (EF), diferente do inicial, pois também ela é, agora, um indivíduo diferente daquele do início da narrativa, logo: “[passou] de um equilíbrio a outro, diferente do primeiro”. 1.2.2 Os insetos na teia Embora não haja no romance passagem que explicite o afastamento temporal entre o tempo narrado e o tempo da narração, diferenças entre o comportamento inicial e a percepção que a protagonista tem das personagens Marfa, e Patrícia no final da narrativa, sugerem uma Raíza já fora do aquário, olhando e avaliando a crise vivida por ela e por seu grupo. Observa-se que as personagens de Verão no Aquário parecem seguir um caminho positivo na sua evolução. Na construção das personagens não há preocupação com a configuração física das mesmas, o importante é a posição interna assumida por elas diante dos fatos vivenciados As criaturas de Lygia Telles são retratadas aos poucos: detalhes delas vão sendo deixados pela narradora ao longo da narrativa. Cabe ao leitor reunir as peças e montá-las. Elementos recorrentes na obra da escritora são utilizados para retratá-las, dentre eles: o olhar estrábico (de Marfa), a cor verde (do lenço de Tia Graciana, da fita da fantasia de Marfa, dos olhos), o dourado dos olhos e as unhas roídas (de André), detalhes do rosto, ombros, mãos os quais revelam aspectos do lado escuro das personagens. Marfa, a prima de olhar estrábico e sem brilho, de uma beleza fanada precocemente, é observada por Raíza durante o sono: “achei-a grande demais. Branca demais naquela meia nudez. [...] Precisava beber tanto? Hem?” (p. 07). Por 30 outro lado, “tem a expressão de uma criança que [acabou] de rezar” (p. 08). A desmedida, o desejo de viver intensamente, uma certa irresponsabilidade, a inocência misturam-se à solidão e à carência afetiva na composição dessa personagem. A morte prematura da mãe e a insanidade mental do pai, internado em um sanatório, justificam a frase de Marfa a respeito de si própria: “eu não tenho nenhum morto para sonhar. Nem lembro das feições da minha mãe. [...] Meu pai [...] um homem que me dava medo [...] mas que agora não me provoca nada. Nada.” (p. 8) Apesar disso, é ela quem, em meio a todos esses fatos, surpreende a prima: embora não abandone a vida de festas, o exagero no uso de álcool e o consumo eventual de outras drogas, é capaz de encontrar uma saída racional e prática para sua vida: intensifica consideravelmente sua produção como tradutora e arranja um emprego para auxiliar a tia nas despesas geradas pela internação do pai. É na construção da personagem Patrícia, mãe de Raíza, que essa visão do antes e do agora é percebida mais intensamente. Referida inicialmente como a sereiazinha, ser etéreo, fluido, prestes a desfazer-se na névoa, transforma-se na dama esquiva, com sorriso de Gioconda; e ainda na mitológica esfinge, ser misterioso, distante e ameaçador pela possibilidade destrutiva nele contida. Paulatinamente, esse ser distante e silencioso, dotado de extremo autocontrole, vai adquirindo características humanas e solidez. O traço humano se evidencia à medida que a protagonista-narradora se dá conta das marcas que a passagem do tempo imprimiu à mãe: o castanho-grisalho dos cabelos, a rede de rugas que surge quando é magoada e que lhe altera o rosto, ou ainda as sardas das mãos que ela tenta manter escondidas, a prega de cansaço no canto da boca que Patrícia procura encobrir com a máscara da impassibilidade, também pela referência à beleza madura, mansa, natural, nos ombros curvos. Todos esses sinais colocam Raíza frente a um ser real, o qual é definido por ela no final de sua narrativa: “ela era uma velha” (p. 204). A substituição da fluidez pela concretude e do mítico pelo humano em Patrícia é completada pelo estado sólido que Raíza atribui à mãe – contraposto ao estado pastoso com que se caracteriza –, pela firmeza da pedra (rocha) que resiste às tempestades, pela dureza de ferro da vontade materna que lhe permitiu superar os momentos difíceis. A percepção dessa lenta metamorfose que se opera na 31 imagem materna parece ser o caminho que possibilita a Raíza, finalmente, aproximar-se da mãe e (re)integrar-se aos valores defendidos por ela. No entanto, Patrícia readquire/mantém o traço mítico na caracterização feita por André: corda salvadora, a intermediária entre o mar e a terra, do mesmo modo que o caráter de árvore, dado por Raíza, lhe confere a possibilidade de fincar-se na terra (a realidade, a concretude, o hoje) e apontar para o infinito (o sonho, a possibilidade, o devir). As duas personagens masculinas (Giancarlo e André) envolvidas afetivamente com a protagonista, constroem-se como o verso e reverso de uma mesma imagem. Assemelham-se ambos por transformarem sua casa em uma concha em que se refugiam para esconder sua inadaptação ao mundo exterior. Giancarlo faz do sótão o seu espaço de fuga. Nele esconde sua incapacidade para absorver a deslealdade do amigo e o fracasso como administrador dos seus negócios. André esconde-se no quarto do casarão, sem saber o que realmente quer ser: sacerdote ou professor. Vivem ambos uma vida de fantasmas, paralela à das figuras femininas do romance. No final, permanecem apenas nas lembranças e nos sonhos dessas mulheres, principalmente de Raíza e da Tia Graciana. Além disso, embora de modos diversos, ambos, fragilizados, dependem de Patrícia para viver: Giancarlo financeiramente, André emocionalmente. O jogo de inversões é percebido na caracterização de ambos: o pai é comparado a um passarinho empalhado, um corpo vazio, oco: mantém a forma, a aparência de vida, mas perde o interior. Sua caracterização física assemelha-se ao seu relacionamento familiar: embora o vínculo afetivo com Patrícia não mais exista, permanecem ambos morando na mesma casa, mantêm um casamento que só existe na aparência. Em André, é o corpo que parece diminuir até restarem apenas os ossos – o que se percebe na referência às roupas largas demais –, perde a forma, conserva o âmago. O suicídio liberta a alma da carne enrijecida, esvaziando o corpo. 32 Assim, Giancarlo e André simulam o duplo um do outro, sua construção remete às dicotomias forma X conteúdo, ou seja, (sensível/exterior/objetivo) X (insensível/interno/subjetivo), versus, corpo (limitante/temporário/degradável) X espírito, (ilimitado/atemporal/aprimorável), em que o pai representa a forma que, esvaziada, transforma-se em pó e é recolhida pela água, retornando ao seio da terra. André, o ser etéreo, é libertado pela conjuração das forças celestes, integrando-se ao infinito. Ainda no tocante às personagens, Tzvetan Todorov em seu estudo sobre As Categorias da Narrativa Literária, caracteriza-as a partir das relações que estabelecem entre si.Tais ligações são denominadas por ele a partir de três predicados de base que determinam o eixo das ligações estabelecidas entre elas: o desejo, a comunicação e a participação. No primeiro, a forma mais difundida é o amor, e que é encontrado em quase todas as personagens. O segundo se realiza na confidência, e a última se concretiza na ajuda. Como conseqüência destas podem estabelecer-se outras relações que dão conta das transformações dos sentimentos. Essas se realizam segundo duas regras de derivações: a da oposição e a do ser e parecer. Na regra opositiva, destaca-se o lado negativo dos predicados de base: o ciúme, o ódio, a intriga, a denúncia e a oposição. A segunda mudança nas relações pode derivar da diferença entre o ser e o parecer, em que a aparência não coincide, necessariamente, com a essência da relação. As personagens vítimas das relações de aparência, quando se apercebem do seu engano, encarnam, em nível secundário, os aspectos do tomar consciência, do perceber, predicado designativo da ação que se dá quando a personagem descobre que a relação que tem com outra personagem não é a que acreditava ter. Na obra de Lygia Telles, o foco de interesse não são os grandes conflitos, as lutas externas, as guerras ou as relações internacionais. As relações e reações discutidas em seus textos circunscrevem-se ao íntimo da personagem ou, à rede de relacionamentos que esta estabelece no seio familiar ou no grupo social em que vive. Assim, em Verão no Aquário importam as relações desenvolvidas entre os 33 membros da família e as influências, tanto positivas quanto negativas, exercidas por eles sobre a protagonista e o ambiente que a rodeia. Os relacionamentos do romance em estudo parecem, em geral, marcados pelo eixo do desejo, da não realização e do conflito. Raíza, ainda criança, vê o prazer das descobertas infantis ser substituído pela dor e pelo medo, sentimentos causados pela discussão que surpreende entre os pais, numa certa madrugada: “Giancarlo, estou exausta, está me ouvindo? Estou exausta...” Ele respondeu engroladamente. Fechou-se uma porta. As vozes então ficaram confusas mas havia nelas tamanho desespero que fui tomada de pânico e desatei a chorar. (p. 34) A confusão percebida nas vozes estende-se à vida familiar, a porta fechada ergue-se como um muro, separando Giancarlo e Patrícia a partir desse dia, alterando também as relações mãe/filha/pai. O pai, antes brincalhão e amigo, torna-se introspectivo e, “raras vezes saía de casa. Nem me [presenteava mais] com aquelas caixinhas de remédios que eu costumava colecionar. [Refugiou-se] no sótão” (p. 34). Raíza transforma-se em guardiã do pai: “ficava a vigiá-lo de longe até que a sonolência passasse e ele pudesse me reconhecer” (p. 34). Insegurança, uma certa tensão permeia a relação dos dois: “tinha medo: debaixo da poltrona estava escondido um copo de vinho tinto. E se minha mãe entrasse de repente e descobrisse aquele copo? Escorreguei para junto da poltrona, pousei o sapato e enlacei as pernas. Agora ela não poderia ver o copo” (p. 120). Para evitar discussões entre os pais, interpõe-se entre ambos, disfarça o hábito de beber do pai, tenta protegê-lo da irritação da mãe. A cumplicidade, a ajuda é o predicado de base do relacionamento pai/filha. Com seu gesto, talvez Raíza espere preservar os esgarçados laços familiares e suprir a sua necessidade de amor e segurança. De uma certa forma, assume o papel da mãe: protetora da família. A mãe, a partir dessa noite, fecha-se no escritório e em si própria. Dedica-se aos seus escritos e, segundo Raíza, “ela não queria saber de nada.[...] Ouvia. Calava. E muito tesa, muito limpa, sentava-se diante da máquina, punha os óculos e começava a escrever” (p. 61). Com esse gesto parece afastar de si os problemas do cotidiano. Insatisfeita com o comportamento do companheiro, Patrícia tranca-se 34 em um mundo de fantasia do qual parece excluir a todos. Na relação de Raíza com a mãe convivem sentimentos opostos: amor e raiva. A mudança na maneira de agir do pai, sua solidão e a aparente indiferença da mãe em relação ao sofrimento de Giancarlo, somadas às frustradas tentativas de Raíza para aproximar-se de Patrícia, despertam na jovem o desejo de ferir, de magoar, transformando os encontros de ambas em um jogo de palavras. Nesse jogo, a agressividade é disfarçada pela ironia, pelo sarcasmo e é assim resumido pela personagem: “[em] uma simples conversa de rotina, [...] as estocadas mais profundas eram iniciadas por mim. E ela se defendia ou não se defendia, o que era pior ainda.” (p. 131). O fato de a mãe não prolongar a discussão é encarado por Raíza como indiferença, o que a frustra mais do que as brigas. A relação de ambas transforma-se em um misto de mágoa, raiva, afeto e agressividade, aspectos que acabam por estender-se às relações com as demais pessoas do seu círculo de convivência. O aspecto opositivo da relação mãe/filha é representado pelo ciúme e pela raiva. Movida por esses sentimentos, Raíza recorre à intriga como forma de desfazer a imagem idealizada que Graciana tem da irmã: André e seu relacionamento com a mãe é o primeiro recurso utilizado pela personagem para instalar a suspeita na mente da tia. À sugestão de um possível romance entre Patrícia e André, tia Graciana reage, inicialmente, com indignação: “- Mas, Raíza, como é que você pode insinuar uma coisa dessas?! Patrícia é corretíssima. Ela o considera um filho.” (p. 135). Apesar da reação de Graciana, Raíza percebe que a dúvida se instalou na mente da tia. Esta pode ser lida na testa franzida e no ar de interrogação que permanece no fundo do olhar de Graciana. Em uma segunda oportunidade, Raíza sugere que a neutralidade de Patrícia em relação ao possível namoro de Graciana com Simonian, pode ter contribuído para o fracasso do romance, atribuindo à mãe a responsabilidade pela vida solitária da tia: -Sabe que até hoje me lembro de Simonian? [...] -Ainda se lembra? 35 -Quando penso que vocês deviam agora estar casados. Ela não deveria ter interferido. -Mas ela não fez nada, Raíza. -Concordo, ela não fez nada. Não é uma maneira também de fazer? (p. 36) À argumentação de Graciana de que a grande diferença social entre ambos impediria que fossem felizes juntos, Raíza rebate: “Na opinião de minha mãe?” (p. 36). Graciana se cala e Raíza não insiste, mas observa a devastação causada pelas suas insinuações na imobilidade e no medo que vê refletidos no rosto da tia. Raíza percebe que seu insidioso trabalho começa a surtir efeito quando a própria Graciana a procura e insinua: “Tenho achado a Pat mudada ultimamente, minhas antenas dizem que há algo diferente nela. Você não notou? [...] Sinto, meu bem, que há qualquer novidade no ar. [...] E se você estiver com a razão? [...] se ela tivesse mesmo um interesse mais especial pelo André?” (p.133). Tia Graciana, que inicialmente não admitia a possibilidade de um romance entre Patrícia e André, passa a vigiar a irmã, buscando evidências que comprovem suas suspeitas, excita- se com a possibilidade da irmã não haver resistido ao “impulso carnal” (p.134). Embora a suspeita do romance anime sua vida monótona, persiste ainda o desejo de acreditar na integridade da irmã e que a ligação de Patrícia e André é apenas uma relação fraternal: “Outras vezes acho que é só amizade, afinal, muito feio isso de se envenenar tudo” (p. 151). Para Raíza, a dúvida de Graciana representa a vitória da maldade sobre a inocência. .Embora afirme, “não era a ela que eu queria ferir, a ela que nada tinha, a não ser algumas lembranças [...] esgarçadas como [as suas] cortinas” (p. 106), acaba por magoar mais à tia do que à mãe, ao fazê-la duvidar da imagem positiva que tinha de Patrícia até este momento. A relação de Raíza com a prima, Marfa, inicialmente parece basear-se na confidência, na solidariedade. Mas já na primeira descrição que a personagem faz da companheira de festas, percebe-se uma certa animosidade em relação a ela: “achei-a grande demais, branca demais, além disso, [precisa] beber tanto?” (p. 7). Na imagem que transmite só aparecem defeitos. Também sua impaciência com as ressacas, o mal-estar e as lágrimas da prima no pós-festa parecem confirmar um sentimento negativo escondido sob a aparente solidariedade. Impressão que se confirma com a declaração que faz ao saber que o namorado de Marfa resolveu casar-se com outra moça: “animei-me com sua tristeza” (p. 99), animação que 36 sugere vingança. Como conforto, oferece à prima uma garrafa de conhaque e o ex- namorado, Fernando: “Quer levar esse conhaque para você, Marfa? [...] Presente de Fernando, fique com ele e com Fernando também, fique com os dois pronto. Que tal?/ - Um conhaque e um amante, duas lindas ofertas” (p. 102). O comportamento cínico, quase agressivo da prima torna-se revelador. Surpresa, Marfa observa Raíza e conclui: “Você me detesta”. Não conseguindo entender a razão, pergunta: “Por que você me detesta tanto?” (p. 102). Duas são, talvez, as razões de Raíza. A primeira pode ser percebida no diálogo: “-Você acha, Marfa? Que minha mãe e André.../ - E o que você tem com isso? Porque não cuida da sua vida? [...] Só sei que seria muito bom para ambos, compreende?” (p. 166). A defesa de Marfa ao possível romance entre a mãe e André incomoda Raíza que decide fazer alguma coisa para evitar que este se concretize. A segunda razão é percebida quando Raíza observa a conversa entre Marfa e a mãe: Voltei-me. Agora ela agradecia a lata de chá que Marfa lhe trouxera, “Chá inglês, Marfa? Mas que extravagância...” Marfa fechou a blusa no peito. Diante de minha mãe ficava pudorosa como uma menina. “Estou rica, titia, o escritório está pagando bem. E minhas traduções têm rendido mais.” O diálogo prosseguia calmo. Entendiam-se as duas e sempre tinha sido assim: mesmo caladas encontravam-se nas profundidades, como as raízes. (p. 167) A afetuosa relação existente entre a Marfa e Patrícia, tão diferente da sua com a mãe, parece ser o segundo motivo da animosidade de Raíza contra prima. Esta se relaciona com Patrícia do modo que ela, Raíza, gostaria e não consegue. Além dessas razões, ao perceber que a prima alcançou os objetivos que ela gostaria de conquistar – a independência financeira, a estabilidade no amor e o bom relacionamento com Patrícia – a labilidade dos sentimentos de Raíza fica ainda mais evidenciada: por instantes, sente-se feliz por Marfa, analisa positivamente a vitória da jovem – como o prenúncio de que, também ela, Raíza, realizará seus sonhos. Logo depois, no entanto, enquanto tomam café, ao observar a alegria da mãe com o anúncio do noivado de Marfa, a inveja e o desejo de perturbar o entendimento entre as duas se manifesta novamente: “a conversa entre as duas tinha o mesmo gosto daquela geléia [...], era enjoativo. [...] Deixei cair a xícara” (p. 167). Para aprofundar a ruptura do momento feliz sai, deixando no ar a sugestão de que irá visitar André. 37 Os conflitantes sentimentos que a dominam podem ser percebidos na descrição que a personagem faz desse momento: “que loucura! Estava tão bem tudo, por que de repente?...[...] meus sapatos afundavam no asfalto quente. Calquei mais os pés sentindo um obscuro prazer em marcar o chão como Marfa marcara meu braço.” (p. 168) Pisa, fere, marca o chão com o mesmo perverso prazer com que destruiu o momento de felicidade da mãe. Prazer e arrependimento, alegria e culpa misturam-se nessa cena infantil de ciúme. No seu envolvimento com André, esse caráter ambivalente também aparece: se, por um lado, o relacionamento com o rapaz representa a possibilidade de uma nova vida, por outro, é também uma maneira de evitar a relação amorosa entre ele e a mãe, o que fica claro na frase: “preciso me apressar antes que [cheguem] a ser amantes” (p. 8). Duas são as razões mencionadas por Raíza para impedir o romance dos dois: a primeira, proteger a mãe de uma desilusão futura pois, “dentro de alguns anos ela já estaria velha (p. 8) [...] e um caso desses [poderia] destruí-la” (p. 166). A segunda, o medo de que a mãe apaixonada, a abandone: “as pessoas em redor me fugiam [...] Marfa ia se casar, Fernando também, e, se calhasse, até minha mãe...” (p. 166). Para impedir o romance, resolve chegar primeiro ao coração de André. Embora afirme estar apaixonada por André, o desejo de conquistá-lo parece ser uma estratégia para impedir a felicidade da mãe e, assim, eliminar o risco de ficar só. Afirmar sua preocupação com o possível sofrimento materno é um modo de sublimar os sentimentos negativos de ciúme, inveja e medo que a dominam. Analisando-se as relações familiares da protagonista, percebe-se que todas elas têm em comum a ambivalência, manifestada na mistura de afeto e de agressividade. Nota-se que a figuração de Raíza começa a mudar a partir daquela madrugada distante em que, pela discussão dos pais, o medo e a insegurança passaram a fazer parte do seu cotidiano: desde então, o seu mundo parece perder as bases que o sustentavam. Para manter a frágil e sempre ameaçada tranqüilidade familiar, aprende a disfarçar, a esconder fatos. Conforme cresce, perde a inocência, age maldosamente, intriga, malevolência são as armas que utiliza para disfarçar o impulso de ferir. Valer-se delas representa a sua passagem da condição de 38 “carneirinho loiro” para “raposa astuta”, do mundo infantil para o adulto. Ao final, parece deixar claro que por trás de toda relação de afeto há sempre um sentimento escondido; raiva, ciúme ou inveja, os quais se disfarçam na indiferença, no distanciamento ou no falso interesse pela felicidade alheia. O segredo se manifesta na perturbação das relações que mantém com os outros, desmascarando a superficialidade da imagem de amizade e solidariedade relacionada ao vínculo familiar. Esta parece ser apenas.um sonho de papel, como as solidárias bonecas de mãos dadas recortadas pelo tio Samuel. A união solidária dos bonecos de Samuel paira sobre núcleo familiar como um ideal a ser alcançado tanto no texto quanto como ideologia social. O fato das criaturas do tio serem figuras de papel, passíveis de rasgarem-se, separando-se, então as pequenas mãos, parece corroborar a idéia de fragilidade dos laços familiares. Examinando-se mais aprofundadamente o grupo familial da protagonista percebe-se o esgarçamento dos laços afetivos notadamente entre Giancarlo e Patrícia e entre Raíza e a mãe: o casal vive um casamento de aparências, convencional. O desencontro entre a mãe e Raíza, é flagrante desde a infância, transformando-se a imagem da família unida em um desejo utópico. 1.2.3 O narrador Toda narrativa supõe uma voz a transmitir fatos presenciados ou vividos por alguém, voz que se interpõe entre o narrado e o narratário: a do narrador. É este elemento da narrativa que, mais ou menos oculto atrás dos fatos narrados, transmite a sua percepção dos acontecimentos, dando uma visão indireta dos eventos narrados, afirma Tzvetan Todorov, em seu estudo acerca d’As Categorias da Narrativa Literária26. A partir desta afirmativa, surge a necessidade de distinguir-se o “olhar”, o foco que orienta a narrativa, e as relações que se estabelecem entre narrador e personagem. 26 TODOROV,Tzvetan. As Categorias da Narrativa Literária. In. Análise Estrutural da Narrativa. Rio de Janeiro: Vozes, 1971. p. 211-256. 39 A perspectiva do narrador depende da posição que ele ocupa em relação aos episódios narrados. Jean Pouillon27 destaca três tipos principais de percepção (relações): a visão “por trás”, em que o narrador sabe mais que as personagens; a “visão com”, na qual o narrador sabe tanto quanto as personagens e finalmente a “visão de fora”, em que o narrador sabe menos que qualquer uma das personagens. A primeira, em que o narrador ocupa uma posição privilegiada que lhe permite conhecer todos os desejos secretos das personagens, caracteriza a narrativa clássica. Na segunda, muito difundida no romance do século XX, o narrador é apenas mais uma personagem, por essa razão sua visão é mais limitada: transmite apenas o que viu e ouviu, não tem acesso aos pensamentos das personagens, os sentimentos das personagens são inferidos pela observação do aspecto exterior das mesmas. Isto pode ser percebido no modo como Raíza descreve as reações da mãe: “Ela sentou-se. Parecia tão em paz consigo mesma. Mas eu pressentia a tempestade iminente como um velho pescador farejando o vento. [...] O brilho úmido [...] já tinha se evaporado da sua pele, que me pareceu repentinamente envelhecida” (p.158). No fragmento, a narradora descreve as reações observadas externamente: no rosto, na pele de Patrícia e, a partir das suas impressões, conclui a respeito do estado de alma da personagem. O alheamento da narradora ao que realmente se passa no íntimo da mãe fica evidenciado nas formas verbais utilizadas por ela: parecia, pressentia, me pareceu, que se inserem no campo semântico do imaginado. Caso a narradora tivesse conhecimento real dos sentimentos maternos utilizaria verbos como pensei, senti, reconheci, sabia, incluídos no campo semântico da certeza. Ainda segundo Pouillon, na “visão com” a narrativa pode ser conduzida na primeira ou na terceira pessoa, mas mantendo sempre a visão que uma mesma personagem tem dos acontecimentos. Ao longo da narrativa, o narrador pode seguir uma ou várias personagens e, ao segui-las, pode dar a elas a liberdade de contar os fatos, dando uma visão múltipla sobre um mesmo acontecimento, ou estas 27 POUILLON, Jean. O Tempo no Romance. São Paulo: Cultrix; EDUSP, 1974. p. 39-45. 40 podem contar fatos diferentes, compondo o que Todorov chama de “visão estereoscópica”28. O romance Verão no Aquário é narrado em primeira pessoa, tendo como foco único a narradora-protagonista. Contando sua própria história, Raíza tem uma percepção interna dos fatos – visão com –, segundo Pouillon. É também a partir da sua perspectiva que são traçados os perfis das demais personagens do romance: tia Graciana, Patrícia, a prima Marfa, André. Para retratá-las, a narradora vale-se da observação, (o sensível). de comparações, metáforas e da imaginação, como exemplifica a descrição que faz de Graciana: o labiozinho curto contraiu-se como se um cordel o tivesse puxado, obrigando-o a esconder os dentes. [...]. Pequeninas gotas de suor leitoso escorriam-lhe pelas gretas da máscara de creme. Os cantos dos olhos caídos – olhos de Pierrô – pareciam na iminência de escorrer com o suor (p.36). Na descrição da tia percebe-se dois níveis: o primeiro, contendo os traços físicos de Graciana: o lábio, os olhos, a máscara de creme e o suor; o segundo, que permite ver para além da realidade objetiva a profundidade que foge ao controle da mesma: contrai-lhe o lábio, adensa, tinge o suor e denuncia a luta interior para controlar o sofrimento e compor a máscara (imagem) de ingenuidade, de quase infantilidade mantida por ela. Nas gretas da máscara, manifestam-se as contradições e os conflitos subterrâneos traduzidos no aspecto leitoso do denso suor, a dor, que escondida, está a ponto de liquefazer seus olhos e que o cordel, ao contrair-se, impede que escorram. O perfil de Raíza, o seu modo de ser, vai sendo revelado pela voz das pessoas com quem convive, como exemplifica o diálogo entre Raíza e Diogo, um antigo namorado: “Perguntei-lhe então o que dizia esse outro eu quando nos amávamos. [...] ‘Diz que você está fingindo amor, Zazá. Que está representando o tempo todo e que é inútil fingir. Que você não sente desejo nem nada e que é melhor nos metermos num cinema’” (p. 49). A observação a respeito de o fingimento ser um traço inerente ao comportamento da personagem sugere a tentativa da mesma em adequar-se às regras do grupo social em que vive, uma 28 Ibidem op. cit. nota 26, p. 240. 41 maneira de ser aceita e um disfarce para esconder a verdadeira Raíza, que teme ser rejeitada mostrando-se como verdadeiramente é. Da descrição da própria imagem refletida no espelho apreende-se a auto- imagem de Raíza Voltei-me para o espelho: uma moça magra e loura, os pés descalços manchados de talco. E os cabelos escorrendo água. [...] Por mais banhos que tomasse persistia o cheiro da memória, ah, se eu pudesse limpá-la. [...] Precisava ter ido? [...] Desgostava-me aquela minha vontade que desfalecia a cada passo. (p.127) Uma jovem simples, sem problemas com sua aparência física, insatisfeita com a inconstância das suas resoluções, com medo de ser autêntica para não perder os amigos são as características que se evidenciam na imagem de Raíza. A força poética da narração do romance está monólogo interior, que Alfredo Leme de Carvalho classifica como uma “especialização [...] de um modo de foco narrativo”29. O estudioso define monólogo interior como “a apresentação não analisada do que se passa na consciência de [...] um personagem”30, tendo como característica principal o aspecto contínuo do pensamento, o que originou o termo fluxo (corrente) de consciência. Embora ambos os termos, monólogo interior e fluxo de consciência, sejam utilizados como sinônimos na literatura narrativa, Alfredo de Carvalho baseado nos estudos de Scholes e Kellogs, destaca algumas diferenças entre eles: o termo fluxo de consciência, originado da expressão inglesa “stream of consciousnes estaria mais ligado à psicologia e aos conceitos de “graus de consciência” (consciente, subconsciente, inconsciente) de Freud, dando à consciência a noção de profundidade. O termo monólogo interior, mais ligado à literatura narrativa, seria a apresentação direta dos pensamentos não verbalizados de uma personagem, correspondendo a estados de consciência pré-verbais. Um acontecimento externo desencadeia os processos de consciência, reproduzindo livremente os pensamentos da personagem. 29.CARVALHO, Alfredo Leme de. Foco Narrativo e Fluxo de Consciência. São Paulo: Pioneira, 1981. p. 51. 30 Ibidem, p. 3. 42 A expressão “le monologue intérieur” foi cunhada pelo crítico literário francês Valéry Larbaud no prefácio que escreveu para a segunda edição do romance A Canção dos Loureiros, de Édouard Dujardin para tentar definir a técnica narrativa utilizada no romance, cuja edição original havia sido publicada em 1888. James Joyce (Ulisses), Marcel Proust (Em Busca do Tempo Perdido), ao lado de Virgínia Woolf valeram-se desse novo estilo ficcional no qual “o autor registra [...] os movimentos interiores do pensamento e o fluir de sensações e de sentimentos no espírito de seus personagens”31. Embora fosse empregado na prática literária desde 1888, somente em 1931 Édouard Dujardin propõe uma primeira teorização do método na obra Le Monologue Intérieur. Após “ter sido levado ao limite por Joyce [o método] recebe [...] valorização retroativa”. A investigação teórica do monólogo interior obedece às mesmas regras da formação de outras teorias sociais, afirma Danièle Sallenave32 em seu artigo Sobre o Monólogo Interior: Leitura de Uma Teoria, isto é, parte-se da observação empírica para descobrir as leis que regem a sua estruturação, um “olhar” do exterior para o interior, que desencadeia um movimento de idas e vindas. Tendo sido utilizado por escritores renomados, tenta-se, então, explicar o método e estabelecer a sua importância para a literatura. Analisando-se a narração em monólogo interior observa-se que este se diferencia do monólogo tradicional tanto no plano formal quanto no conteúdo: a expressão do pensamento da personagem se realiza de modo diferente em cada um. No monólogo, o escritor conhecia profundamente suas personagens. Isto permitia a ele comunicar e interpretar o que elas pensavam ou sentiam. Nas obras de escritores como Dickens, Balzac ou Zola uma pequena observação indicava ao leitor que o texto transcrevia o pensamento da personagem: “Refletia com meus botões que era impossível prever o que a dama simularia em seguida”33 ; “Esta mulher vai-me ser útil, disse para si mesmo Charles Grandet”34. Além disso, o pensamento exposto no monólogo limitava-se ao momento que estava sendo 31 SILVEIRA, Ênio. JOYCE, James Dublinenses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. contracapa. 32 ROSSUM-GUYON; Françoise Van; HAMON,Phillippe; SALLENAVE, Danièle; Sobre o Monólogo Interior: Leitura de Uma Teoria. In:. Categorias da Narrativa. Lisboa: Vega, 1989. p.107. 33 DICKENS,Charles. Um Conto de Duas Cidades. São Paulo: Nova Cultural, 2002. p. 205. 34 BALZAC, Honoré de. Eugenia Grandet. São Paulo: Clube Internacional do Livro, 1999. p. 47. * Grifos meus. 43 narrado ou à situação descrita. É um modo de narrar lógico, racional e controlado pelo autor. No monólogo interior o pensamento da personagem flui livremente, sem uma sucessão lógica, criando a impressão de que é a consciência da personagem que está sendo apresentada. Não há explicações do autor porque a personagem parece falar de si para ela própria, ignorando completamente o leitor. Assim permite-se o livre “vaguear e jogar da consciência que se deixa impelir pela mudança das impressões”35, pelos acontecimentos interiores ou pelos pensamentos que se sucedem, nem sempre de maneira lógica. Nele, o fato externo é apenas o impulso inicial que deslancha os processos da consciência os quais, uma vez ativados, fogem ao controle da personagem, como se observa no fragmento: Enlacei as pernas. Por que a rosa no lugar do rosto? Voltei-me para o retrato dele em cima da mesinha de cabeceira. Meu pai. Com as mãos enfurnadas nos bolsos do sobretudo, ele sorria no meio de um jardim. Que jardim seria aquele? [...] Que jardim é este? perguntei-lhe quando achei o retrato. [...] Meu pai teve um sorriso reticente. Ah, Raíza, esse jardim... [...]. Guardei o retrato no bolso do avental . [...] Nesse bolso eu guardava retalhos de seda que tia Graciana punha fora, caixas de fósforos com besourinhos dentro, cromos, pedrinhas. (p.8; 9) No longo monólogo desencadeado pelo sonho com o pai, o pensamento da protagonista se desloca do presente para o passado e vice-versa, dos objetos que a rodeiam novamente para suas lembranças e, no ir e vir dos seus pensamentos, cada pequeno detalhe recordado por ela parece despertar uma outra lembrança, formando um fluxo contínuo, aprofundando-a cada vez mais nos seus pensamentos até apagar o acontecimento externo que provocou a reflexão. O comportamento da personagem evidencia um dos postulados que, de acordo com Danièle Sallenave, estrutura o monólogo interior: a continuidade da consciência. Esse método narrativo rompe com a idéia de “estados de consciência” que sugerem estágios estanques e descontínuos do pensamento (consciente e inconsciente). O pensamento passa a ser visto como um processo móvel, fluido, um fluxo contínuo: do mais consciente até o menos consciente e vice-versa, com um movimento passível de ser percorrido pela introspecção. O mergulho em si próprio possibilitaria ao ser alcançar a zona mais afastada do consciente, o pensamento 44 “mais íntimo, o mais próximo do inconsciente, [ainda] no seu estado nascente (pré- verbal, não racionalizado) em estado bruto”36 e traduzido, muitas vezes, em um texto truncado, quase caótico, sem preocupação cronológica ou de continuidade entre os fatos reproduzidos. Aceitando-se o monólogo interior como “o escrito do eu” para o eu, conclui- se que o método narrativo possibilita a descoberta desse “outro eu” escondido, e que é percebido no pensamento que flui com liberdade, nos silêncios, nos implícitos, nas relações simbólicas que a representação da subjetividade da personagem estabelece com o real, [esquadrinhando a profundidade] [...] que “não [está] presa [...] ao acontecimento exterior,[...] e cujo “peso” repousa naquilo que é desencadeado, no que não é visto, [no reencontro do eu perdido] na memória”37. Repetindo-se assim a mesma lei que permitiu conhecer a estrutura profunda do monólogo interior enquanto técnica narrativa: descobrem-se as regras estruturadoras a partir da parte visível do método; conhece-se o verdadeiro eu da personagem através dos pensamentos que expressa. Considerando-se o modo narrativo, a distância e a perspectiva da narração em Verão no Aquário nota-se que a narradora organiza e seleciona os fatos e que as impressões subjetivas que estes lhe causaram norteiam a sua narração. Ao se pensar na focalização do relato percebe-se a visão interna, a “visão com”, segundo a classificação de Pouillon, de uma narradora que experienciou os fatos e as impressões relatadas. É a visão de Raíza que comanda a narrativa. Na focalização interna, narradora e personagem se confundem, transmitindo, assim, uma visão limitada, restrita dos fatos contados, pois a narradora tem acesso apenas ao que viu e ouviu. Narrando em primeira pessoa Raíza assume, ao mesmo tempo a seleção e a reflexão sobre o vivido. Exerce ainda a função de rememorar os acontecimentos do seu passado e a partir desse ato esclarecer os efeitos que estes tiveram sobre si própria. O ato narrativo se faz pelo monólogo interior no qual uma impressão ou um fato rememorado desencadeia uma série de outras associações e lembranças as quais não guardam uma relação lógica entre si. Os pensamentos assim expressos, 35 AUERBACH,Erich. Mimesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 483. 36 Idem Op. cit. nota nº 29. p.111. 45 dão ao texto um aspecto fragmentado, móvel, em que uma impressão do presente remete a um fato do passado e este “[desaparece] com a rapidez dos vermezinhos que espiavam e se recolhiam nos furos dos livros do sótão” (p. 12), realçando a instantaneidade da ação imaginativa que se desloca por espaços contínuos entre a realidade e o inconsciente, entre o presente e o passado e vice-versa. 1.2.4 O tempo O tempo, esta “longa fita que vai se desenrolando gradativamente e de maneira imprevisível”38, tem características próprias em romances escritos na primeira pessoa que Adam Abraham Mendilow chama de “o tempo do pseudo- autor”. Este tem como peculiaridade o duplo foco: “o tempo em que o presumido autor escreve e o tempo em que os eventos registrados são dados como tendo ocorrido”39 ou seja, o tempo pessoal (em que o narrador está inserido) e o objetivo (no qual se desenrola a narrativa), configurando-se o elemento temporal desse tipo de narrativa em um entrelaçamento de várias unidades temporais. Para contar a própria história, segundo Mendilow, o pseudo-narrador posiciona-se de duas maneiras em relação aos fatos narrados: torna presentes, na consciência imediata da personagem, os eventos do passado ou transforma em passado os fatos mais próximos. No primeiro caso, o narrador se vê em ação, como em um filme, coloca-se depois da ação e escreve no imperfeito. Este modo de indicar o tempo pode ser observado quando a protagonista, do romance em análise, fala da sua infância: “era no sótão que eu queria ficar, sentada ao lado do meu pai que para lá subia quando ficava cheirando a hortelã” (p. 11). Na segunda opção, quando fala de eventos mais próximos, como os ocorridos no verão enfocado na história, a pseudo-autora cria a ilusão de que a ação está acontecendo, colocando-se na narrativa como se estivesse no presente e, nestas ocasiões, narra no pretérito perfeito que, segundo Jean Pouillon, é o tempo da memória. Esse modo de narrar é utilizado no fragmento: “Levantei-me e 37 AUERBACH, Erich. A Meia Marrom. In: Mímesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1994. p. 487. 38 POUILLON, Jean. O Tempo no Romance. São Paulo: Cultrix, 1974. p.118. 39 MENDILOW, Adam Abraham. O Tempo e o Romance. Porto Alegre: Globo, 1972. P. 100. 46 escancarei as janelas. Um raio de sol varou o quarto. [...] Eu era jovem e tinha o sol e tinha Fernando. Afastei-me da janela [...]. Comprimi os olhos nas palmas das mãos. O quarto foi se apagando” (p. 20). Em Verão no Aquário observa-se a superposição de planos temporais: o cronológico (histórico), o narrativo, o psicológico e um tempo que se poderia chamar mítico, marcado simbolicamente pelo fechamento de um ciclo: “há o tempo de espalhar e o tempo de juntar, o tempo de odiar e o tempo de amar [...] Passara o tempo de ferir e chegara o tempo de cicatrizar” (p.189). O tempo narrativo é o de um verão de “calor infernal” (p. 6) em que “até o silêncio era quente” (p. 21), de um período histórico (cronológico) em que “há guerrilhas pipocando em toda parte [...] e a pátria [está] em perigo”, no qual “engrossa uma revolução para derrubar o presidente, coisa de militar, compreende?” (p. 50 e 68) numa referência ao período pré ditadura militar, iniciada em março de 1964. Tempo em que as mulheres começam a conquistar o direito de serem as mantenedoras do grupo familiar, de escolher por razões afetivas seus companheiros e de ter experiências sexuais fora do matrimônio. É marcado ainda pelo uso, entre os jovens, de álcool, de “comprimidos azulados”, do lança-perfume e das drogas ilícitas como a maconha e a cocaína, referidas apenas implicitamente no texto: “- Não falo só na bebida, você sabe./ - Rodolfo me deu uma dose pequena, foi só uma brincadeira, compreende?” (p.15) Três são os momentos que delimitam o tempo da narrativa: o primeiro, o mais próximo do início do verão, faz referência ao final de um ano e ao início do seguinte: “- Fernando, vamos ser bons no Ano Novo! [...] Olha aí os sinos tocando, blim, blão!... (p.55); [...] um desconhecido [...] jamais esqueceria da última noite desse ano, quando uma mulher loura e nua abriu uma janela e atirou um disco no ar” (p. 55; 56). O segundo período desse verão tem como marco temporal uma festa à fantasia. Pelos elementos citados: fantasia de melindrosa, máscara, lança- perfume, bloco de palhaços. esta poderia corresponder ao carnaval: “Ficamos dançando e cheirando éter até que me senti mais leve do que o pólen de ouro na peruca do mascarado” (p. 79). Festa que marca também uma mudança de rumo na 47 vida de Raíza. Outras referências ao tempo narrativo são explicitadas no diálogo entre Raíza e André: - Você está precisando de uma pasta nova, será meu presente de Reis, dia cinco, não? - Seis de janeiro. - Ah! É verdade, dia seis ... Onde você passou o Natal, André? - Fui à Missa do Galo. E depois voltei para a ceia de dona Petronilha. (p. 94) Nos capítulos finais, a sugestão da aproximação do período da Páscoa e a referência ao seu significado simbólico de morte e renascimento, o “sopro frio do vento” (p.206) entrando pela janela aberta e a frase “o verão já está no fim” (p. 203) marcam o terceiro momento do tempo narrativo, é o encerramento do período englobado pelo romance. Em Verão no Aquário, o tempo psicológico, emergente do labirinto mental da narradora-protagonista, cresce em importância. É um tempo interior, medido pelas sensações, pelas experiências e pensamentos da protagonista, cuja duração está ligada à subjetividade, não à cronologia. O espaço temporal contemplado no romance estende-se desde a infância da narradora até o hoje da narrativa, englobando ainda, por vezes, as lembranças de um passado mais remoto: o tempo ligado à história de sua família que é trazido ao presente pelas vozes de Tia Graciana e de Dionísia. O ontem-hoje-amanhã coexistem no texto, ampliando e relativizando a duração do tempo. Analisando-se a estruturação do tempo em Verão no Aquário percebe-se que a interposição de planos temporais diversos, ao longo da narrativa, provoca a interrupção do seu desenrolar. A volta introspectiva a acontecimentos do passado que surgem em ‘flashes’ repentinos, altera a sucessão dos fatos. Assim, percebe- se na narrativa um presente-presente e um presente-passado. O presente-presente compõe o corpo da narrativa e é apreendido nas modificações do cenário, no movimento, nas variações de cores, luz e sombra, nos objetos. Esse tempo referencia os fatos ocorridos durante o verão da história. É um dado apreendido imediatamente pela consciência, como a seguir: Acendi o abajur. No quarto de Fernando, um novo instantâneo dele preso ao espelho em cima da cômoda. [...] Na minha ausência aparecera ainda um cinzeiro de bronze, [...] e um coelhinho felpudo [...]: os pequenos objetos marcando a 48 passagem de alguém. [...] Também era novo ali o livro sobre a Coréia. [...] e uma agenda com alguns papéis que envelheceram nos bolsos. Ao lado, um botão preto guardando ainda nos furos uns restos de linha rompida. Um pente amarelo e limpo. Cheirava remotamente a feno, a lavanda que o Anjo usava. (p. 125) Os objetos desconhecidos encontrados por Raíza no quarto do antigo namorado, não só indicam que por ali passaram várias pessoas na sua ausência, mas atestam também, pelas pequenas modificações do cenário, a passagem do tempo. O presente-passado é recobrado por um impacto na consciência. A partir do estímulo – um fato, um objeto – os acontecimentos ocorridos num tempo distante são evocados. Estes, por sua vez, desencadeiam uma série de associações que ‘presentificam’ o passado, alteram a seqüência temporal e dão ‘profundidade’ ao texto: “Aproximei-me da vitrine cor-de-rosa. Uma leve camada de pó cobria os cálices: Lembrei-me de que minha avó sabia fazer licores, uns licores adamados, com nomes mitológicos, Minerva, Orfeu...” (p. 105). Este tempo situa-se além do tempo da narrativa. O tempo da narrativa corresponde a um verão e é o único que tem marcações temporais definidas: o início determina-se pelas referências ao Natal e à noite de Ano Bom e, o final, na menção feita ao período da Páscoa e do vento que noticia a chegada do outono. Os odores, os perfumes marcantes no presente- passado, sugerem também um futuro: enquanto a infância de Raíza liga-se ao “cheiro de hortelã” do hálito paterno, o futuro é pressentido, prenunciado no “cheiro de árvore”, do suéter de lã usado pelo médico que a cuidou. Um cheiro que, segundo a narradora, lembra o odor de “armário antigo”, de roupa guardada no fundo da gaveta, um perfume de madeira – eucalipto. A introdução do novo perfume, no final da narrativa, sugere também uma evolução positiva para essa etapa da vida da protagonista: a fragilidade da erva – a hortelã – que remete ao passado, é substituída no futuro, pela firmeza da árvore de grande porte. Conclui- se, então que o tempo do passado não tem duração definida, e a evocação dos fatos não obedece a uma ordem sucessiva dos acontecimentos. Embora possa estabelecer-se uma linha de continuidade entre as lembranças da protagonista, estas não aparecem em ordem cronológica dentro da narrativa, a linearidade é 49 construída pelos ciclos existenciais da protagonista, apreendidos, principalmente, a partir das mudanças de cenário. 50 . 2. ESPAÇO: UM PERCURSO DA PAISAGEM À INTIMIDADE 51 2.1 Geografia literária: de paisagem a espaço psicológico Figura traz ausência e presença, prazer e desprazer. (Pascal) A mudança gradativa no tratamento dado ao espaço e no papel desempenhado por esse elemento dentro da narrativa é objeto de pesquisa de conhecidos estudiosos da literatura. Anatol Rosenfeld40 analisa em seu ensaio sobre o romance moderno, entre outros aspectos, as mudanças sofridas na representação espacial nesse gênero de literatura: esse elemento narrativo não visa mais a apreensão de uma natureza empírica, e, sim a exprimir a “experiência psíquica da personagem”41. Dois fatores importantes, segundo Rosenfeld, ligar-se-iam a esse processo de apagamento do real observado na construção espacial: o primeiro deles seria a introdução da perspectiva na pintura, criando a “ilusão de um espaço tridimensional”42, o qual é projetado a partir de uma óptica particular e antropocêntrica. O segundo seria o processo de “desrealização” observado na pintura. Ao longo desse processo ela deixa de ser figurativa para tornar-se “a expressão de emoções subjetivas, [...] de visões oníricas de um mundo dissociado e caótico”43, como se constata especialmente nos movimentos de vanguarda, como o expressionismo, o surrealismo e o cubismo. A tese defendida por Rosenfeld é a de que um processo análogo tenha ocorrido no romance no que se concerne a visão do espaço, levando a uma substituição gradativa da realidade sensível pela consciência da personagem, assim como da concretude pela abstração. Na raiz dessa evolução estaria a emancipação do homem da idéia de ser governado por forças sobrenaturais: os deuses, os magos e feiticeiros, o acaso. Ao asenhorear-se do próprio destino, o homem conquista o direito a uma visão particularizada do mundo e da contínua transformação das coisas. Dois períodos marcantes dessas idéias de liberação do homem da direção divina foram o período sofista (séc. V a. C.) e o renascentista (séc.XIV–XVI), épocas nas quais as verdades absolutas são questionadas e a racionalidade passa a ser a chave para explicar o universo. 40 ROSENFELD, Anatol. Texto e Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1976. Reflexões Sobre o Romance Moderno. p 75-97. 41 Idem, p. 84. 52 Ao tentar acompanhar o percurso evolutivo do espaço na narrativa, percebe-se que técnicas diferentes foram sendo utilizadas para representar o espaço ao longo da história da literatura, segundo o papel a ele destinado. Em Literatura Européia e Idade Média Latina, Ernst R. Curtius44 demonstra que na Antiguidade, na Idade Média, na Renascença e no século XVII, o espaço é um todo infinito, quase imperceptível, ao qual o homem está integrado. A poesia está centrada na personagem e é em função da posição social ocupada pelo herói que ela é representada: o guerreiro desloca-se por uma paisagem de árvores imponentes, como o carvalho, o pinheiro e o loureiro, das quais recebe a sombra e retira a madeira para construir seus barcos. A terra é fértil, produz frutos de todas as espécies (romãs, pêras, uvas, azeitonas e figos), é provida pelos deuses de animais (bois, cabras e carneiros) destinados a sua alimentação e às libações. Nesse espaço, cavernas, relva e água fazem parte do seu abrigo, servem para o descanso e para mitigar a sede: Nessa ilha muito plana, [...] coberta de árvores, [...] há um número infinito de cabras selvagens. [...] Vimos, num promontório, uma gruta, perto do mar, alta e sombreada de louros, [...] troncos de frondosos pinheiros e carvalhos45. A Natureza é ampla, grandiosa, em consonância com os guerreiros que por ela lutam. Grandes são também os perigos nela enfrentados: seres imensos, monstruosos (os ciclopes – na Odisséia –; os gigantes selvagens – Os Argonautas), vencidos pela audácia e esperteza do herói. O mar, habitado pelo deus dos cabelos azuis, de humor instável, é a outra imensidão a ser percorrida e vencida. Ao lado do guerreiro está o poeta, o tocador da lira que, “com seus deliciosos sons [...] e inspirado canto aviventa o ânimo dos Argonautas”46. Para sua inspiração reserva-se um sítio aprazível, tranqüilo, com bosques, fontes e campinas. Assim, similar ao Orfeu argonáutico, e em comunhão perfeita com essa Natureza, protegido por Pã – o deus dos rebanhos – e inspirado pelas ninfas, tem- se o pastor: “o profissional que vive ao ar livre ou no campo, longe da cidade, [com] 42 Idem. p. 77. 43 Idem, p. 76. 44 CURTIUS, Ernst Robert. A Literatura Européia e Idade Média Latina. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979. p. 190-209. 45 HOMERO. Odisséia. São Paulo: Ediouro, [s.d.]. p. 99 e 101. 46 SCHWAB, Gustav. Os Argonautas. São Paulo: Melhoramentos, [s.d.]. p. 16. 53 lazeres e ensejo de poetar, possuindo [...] um instrumento musical primitivo, [...] desfruta fartos vagares”47 Os cavaleiros da Idade Média equivalem-se aos guerreiros de Homero. A floresta bravia, selvagem é a paisagem pela qual “os cavaleiros do rei Artur chegam de suas viagens”48. Em seu deslocamento, lutam pela difusão dos valores cristãos de paz e união entre os homens, defendendo os fracos e pobres contra os ricos e poderosos. O cavaleiro é uma representação de Cristo em sua jornada pela terra. O sítio ameno desloca-se da terra para o céu: é o prêmio de uma vida dedicada à fé cristã. Após a morte, o cavaleiro permanecerá próximo de Deus, em uma terra muito semelhante à paisagem em que vivia o pastor e na qual, nunca mais se ouvirá [...] choro. Não haverá mais nela criança para viver poucos dias, nem velho que não cumprirá os seus. [...] porque a longevidade do meu povo será como o da árvore, e os meus eleitos desfrutarão de todas as obras das próprias mãos. [...] O lobo e o carneiro pastarão juntos. [...] Não farão mal nem dano algum em todo o meu santo monte49. A terra descrita como prêmio ao cavaleiro é muito semelhante àquela que cercava os heróis, desde Homero até o século XVII: a floresta (contendo ou não um bosque no seu interior), para os cavaleiros de nobre estirpe e o locus amenus – belo e ensombrado trecho da natureza, composto de árvores (choupos), regato e uma campina, para os pastores/poetas. Até esse momento, a paisagem tem como função enquadrar e localizar o herói, é um elemento estático, pictórico, o local onde ocorrem as ações: sentimentos ou sensações do herói não concorrem na estruturação espacial. A partir do Renascimento e do desenvolvimento do pensamento científico, funda-se uma nova atitude frente à vida e dela emerge uma nova imagem de homem: o ser racional, livre da ordem divina e voltado para as coisas do mundo, desejoso de viver as delícias e prazeres proporcionadas pelo mundo terreno. O homem do século XVIII descobre novos mundos. A razão e a verdade, atenuam nele a tensão entre o Bem e o Mal, característica do século anterior, e encontra o equilíbrio no natural e lógico. Na literatura, a paisagem que circunda o homem é 47 CURTIUS, Ernst Robert. Op. cit. nota 44. p. 194. 48 Idem, p. 208. 49 Isaías 65, v. 17-25. Bíblia Sagrada. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1979. 54 clara, bucólica. A vida no campo, em contato direto com a natureza, torna-se símbolo da liberdade, do mundo não maculado que se contrapõe à cidade dominada pela burguesia e pelo comércio. A partir desse século, o espaço sofre uma paulatina fragmentação, se diversifica, torna-se individualizado e próximo do herói. Com Balzac, os objetos que cercam a personagem falam, denunciam a classe a que ela pertence, adquirem relevância na composição espacial e dentro da narrativa. Pela importância dada a eles, passam a ser exaustivamente descritos pelo ficcionista. A descrição passa a interferir no andamento da narrativa: impõe ritmo – é pausa, é movimento. Ao analisar o mundo romanesco, Roland Bournneuf e Quellet observam que a descrição é a mais difundida maneira de compor o espaço, e sua evolução histórica situa-se entre dois pólos: vai “da recusa quase total a uma recriação exaustiva da realidade [como em Zola e Balzac], do largo quadro harmonioso à precisão seca de um inventário”50. Pode reproduzir um quadro ou ater-se a um simples recorte do espaço abarcado pelo olhar, segundo as intenções que lhe são atribuídas. Assim é que, nos romances do século XVIII e principalmente nos do século XIX, a descrição dos lugares deixa de ser mera composição de cenário para se transformar em meio de revelação da personagem. No Romantismo, a valorização da subjetividade faz com que a paisagem se torne partícipe dos estados de alma da personagem, há uma correspondência entre o estado anímico do herói romântico e os lugares que o cercam. Quando atormentado, joga-se ao exterior, integrando-se às forças naturais desencadeadas pela tempestade à semelhança dos tumultuados sentimentos que o dominam. A natureza áspera ou amena é o espelho dos seus sentimentos, como se pode perceber em: De roda de mim a atmosfera estava impregnada de um hálito perfumado: era a natureza que sorria afagada pela primavera. As aves aquáticas redemoinhavam nos ares ou pousavam sobre as águas [...] ora vagarosos, ora rápidos. [...] Era feliz neste momento, porque repousava de amarguras51. 50 BOURNNEUF, Roland e QUELLET, Real. O Universo do Romance. Coimbra: Almedina, 1976. p. 143. 51 HERCULANO, Alexandre. Eurico, o Presbítero. São Paulo: Ática, 1996. p. 31. 55 Há uma perfeita sintonia entre a natureza repousante retratada e o estado de felicidade experimentado pela personagem. Repousa o coração do presbítero, acalma-se a natureza. A paisagem é também uma maneira de fugir de um mundo em desacordo com o desejo de elevação, de espiritualização. Por essa razão, os lugares altos, próximos à luz do sol e de Deus são os privilegiados pelos românticos. Mais adiante, no século XIX, a revelação da personagem através do meio ambiente assume pretensões científicas, sob influência da corrente naturalista: o meio impõe-se sobre o homem, (de)forma-o. Haverá tantos homens diferentes, quantos meios particulares houver, afirmam os cientistas baseados nas leis da biologia. Conforme Bournneuf e Quellet, graças a essa teoria, “a descrição do espaço vai ascender ao primeiro plano, a ponto de apagar as personagens, [...] de ganhar uma importância superior à do seu estudo”52 A partir do desenvolvimento de aparelhos ópticos que possibilitaram o exame de fragmentos cada vez menores da matéria, chegando ao mínimo que se acreditava ser indivisível (o átomo), o espaço que cerca a personagem também se estreita cada vez mais, até aderir-se a ela. Dessa maneira, as marcas indeléveis imprimidas sobre o ambiente que a cerca permitem, pelo reconhecimento da figura, conhecer o ser que as provocou. Assim, o espaço passa a ser um elemento de troca, estabelecendo-se uma relação orgânica entre o herói ficcional e o ambiente, possibilitando sua leitura no espaço e vice-versa. A intensificação da fragmentação, a desrealização da imagem, leva à ruptura do binômio espaço-tempo. Observado, inicialmente na pintura, com a coalescência dos relógios, por exemplo, o fenômeno acaba estendendo-se também à literatura e, em especial, ao romance. Neste, contemporaneamente, a fragmentação pode ser percebida pela eliminação gradativa do foco narrativo centrado em uma única personagem, assim, a visão do espaço deixa de ser perspectívica, sendo inserido de modo mais sutil, dispensando os recursos plausíveis como, por exemplo uma janela, a presença do “voyeur”, cujo olhar compunha o cenário. Observa-se que o espaço, como as figuras, também se desrealiza, transformando-se em projeção das 56 impressões provocadas no inconsciente da personagem em cujas imagens, por vezes caóticas e confusas, pode-se entrever um sistema simbólico que permite sua interpretação. 2.2 Espaços simbólicos 2.2.1 Bachelard: a imagem e a subjetividade A visão do espaço literário como uma manifestação da subjetividade é estudada por Gaston Bachelard n’A Poética do Espaço. Para o filósofo, o espaço poético é produto da imaginação – uma imagem –, “um súbito realce do psiquismo”53 cujas características são a individualidade, a momentaneidade imaginativa, a não ligação a um passado cultural, a não obediência a um percurso relacional como acontece quando é estudado pela ciência. Em conseqüência, segundo Bachelard, faz-se necessário, para o estudo da imagem, a instituição de uma filosofia diferente da tradicional, que está baseada no racionalismo científico. O estudioso propõe, então, a fenomenologia como método para o esclarecimento da imagem poética, isto é: “o estudo do fenômeno da imagem poética quando a imagem emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade” (p. 2). Conforme Bachelard, toda poética envolve o domínio do devaneio. Nele é elaborada a matéria sensível que fundamenta a imaginação poética. Esta tece um “topos” denso, acolhedor e amoroso, daí ser o espaço poético um espaço de atração, de persuasão, cuja geografia se assemelha ao mapeamento dos sonhos. Por ser um lugar de acolhida, o espaço poético se contrai ou se dilata segundo as expectativas do ser que o habita. Propício a uma estética do corpo, o espaço torna- se tátil, receptivo e seu significado liga-se, semanticamente, aos movimentos do corpo: descer, erguer-se e/ou ao prazer do repouso. No estudo do espaço, o filósofo, segundo suas próprias palavras, pretende: 52 BOURNNEUF. Op. cit. nota 50. p. 152. 53 BACHELARD, Gaston. Op. cit. nota 1. p. 1. A partir de agora as referências pertencentes a esta obra serão indicadas pelo número da página logo após a citação. 57 examinar imagens bem simples, as imagens do espaço feliz, [...] determinar o valor humano dos espaços de posse, espaços proibidos a forças adversas, espaços amados, [...] o espaço vivido, [em razão do que] concentra o ser no interior dos limites que o protegem (p. 19). Dentre os espaços amados e das “imagens da intimidade” (p. 19) estudados por Bachelard destaca-se a “poética da casa” (p. 19), lugar onde o ser aloja, imobiliza e fixa suas lembranças e seu inconsciente. Percorrê-la, explorar seus compartimentos, o sótão, a escada, o porão, os aposentos escondidos e também os já desaparecidos, assemelha-se a topografar o íntimo do ser. É pela topoanálise, isto é, “o estudo psicológico sistemático dos locais [da] vida íntima” (p. 28), que o sonhador escava, expõe os espaços guardados em suas lembranças e, pode assim, (re)encontrar-se, (re)descobrir-se ao percorrê-los. A recuperação dos espaços poéticos da casa são a retomada concomitante de um espaço (matéria) e de um valor (essência) a ela associados. Enquanto objeto material, a casa representa um espaço de posse, demarca um referencial de inserção física e social, estabelecendo uma relação de pertença do ser. A esse aspecto material liga-se o princípio de bem-estar e os valores de proteção, agasalho, agregação e continuidade, valores que dão densidade, afetividade ao espaço. São eles que tornam o espaço/casa um lugar de acolhida, de agregação, aspecto designado por Bachelard como topofilia: do grego tópos (lugar, localidade) e pfhilia, as, (amizade, afinidade, atração). Assim a casa representa o útero simbólico – confortável e seguro – no qual o ser se origina e matura antes de ser jogado no mundo hostil. Esta característica topofílica da casa que confere a ela o caráter de abrigo, acolhendo, na sua intimidade, o ser que a habita, estende-se a todo espaço habitado, conferindo, na opinião de Bachelard, a noção de casa às gavetas, aos armários, aos cantos que são as moradas dos objetos. Estes juntamente com os cofres, os baús, as portas, chaves, fechaduras formam uma poética do guardado, do escondido, do desconhecido, a dialética do interior e do exterior. Estas noções são fundadoras de movimentos, de espaços, de forças que não são experiências antagônicas, mas, antes, têm a capacidade de metamorfosear-se em um e outro, inaugurando uma dialética de ambivalências, de relações espaciais que expressam afetividade, aconchego e proteção. Essas sensações se transmitem ao ser que 58 vivencia espaço/sensação como algo uno e assim o introjeta no seu inconsciente. Ao se reapossar pelo devaneio do espaço em que viveu, o ser recupera também o modo como o vivenciou, justificando-se tomar a casa como instrumento de descoberta e análise do ser. Conforme Bachelard, a imaginação é movida por duas forças: uma que atua na superfície e outra que age na profundidade. A força superficial , segundo o autor, é movida pelo novo, pela descoberta, pela curiosidade. É cambiante como a luz e produz imagens visuais, leves, mais móveis, mais metamorfoseantes, permitindo assim manifestar-se de formas diversas, segundo a cultura em que se inscreve. Por detrás das formas e das cores atua uma outra força, obscura, insondável, misteriosa, ligada à matéria (substância) e à história de produção da imagem. É ao estudo desta força que subjaz à formação da imagem, a sua estrutura, o foco de interesse de Durand. 2.2.2 Durand e a estrutura da imagem: o regime diurno e o regime noturno da imagem A estruturação simbólica do imaginário, isto é, o “conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens”54, estudada pelo discípulo de Bachelard, Gilbert Durand, é a base teórica para a análise das imagens poéticas em Verão no Aquário. De acordo com o antropólogo, todo o pensamento tem uma estrutura simbólica. É dessa perspectiva que o autor estuda “os arquétipos fundamentais da imaginação humana”55 os quais estão ligados às imagens: os símbolos. Estes se formam pela mediação exercida pela sensibilidade do homem entre o mundo dos objetos e o dos sonhos. É a essa troca constante entre as pulsões subjetivas (biopsíquicas) e as exigências objetivas dos meios cósmico e social que Durand chama de “trajeto antropológico” de formação do símbolo. Trajeto entendido como o “dos gestos do animal humano em direção ao seu meio natural”56, estabelecendo-se assim uma estreita relação entre os gestos do corpo, os centros nervosos e as representações simbólicas. 54 DURAND, Gilbert. Op. cit. nota 2. p. 19. 55 Idem, p. 31. 56 Idem, p. 41. 59 Em seu estudo das imagens, Durand afirma estarem elas ligadas a três “trajetos dos gestos” (esquemas), reflexos e movimentos (“dominantes”): postural, nutricional e rítmico ou sexual. A cada um desses “gestos reflexológicos” corresponde um conjunto de símbolos (imagens) cuja representação se prolonga em direção a certas matérias, a certas técnicas e utensílios À dominante de posição ligam-se as matérias luminosas, visuais e as técnicas de separação e purificação, de que as armas, as flechas, os gládios são os símbolos mais freqüentes. O segundo gesto, ligado à descida digestiva, lembra as matérias da profundidade; a água ou a terra cavernosa, os utensílios continentes, as taças e os cofres, tendendo para os devaneios técnicos da bebida e do alimento. Por último, tem-se os gestos rítmicos, cujo modelo natural é a sexualidade. Esses gestos se identificam nos ritmos sazonais e em seu cortejo astral – do qual o lunar é representativo –, se reúnem todos os substitutos técnicos do ciclo: a roda, a roca, o isqueiro e todos os tipos de fricção tecnológica. Os gestos reflexológicos são engramas teóricos que correspondem a esquemas – representações funcionais da imaginação – “trajetos encarnados em representações concretas e precisas”57. Logo, ao gesto postural correspondem dois esquemas: o da verticalização ascendente e o da divisão manual e visual. Ao gesto da deglutição correspondem os esquemas da descida e o do enrodilhamento (acocoramento) na intimidade. Cabe ao esquema a função de presentificar os gestos e pulsões inconscientes. Diferenciados em esquemas e sob influência do ambiente natural e social, os gestos reflexológicos vão determinar os arquétipos: “produto de junção entre o imaginário e os processos racionais”58. Estes representam a concretização do esquema. Assim, aos esquemas ascensionais pertencem os arquétipos do cume, do chefe, da luminária, enquanto que aos esquemas de separação – diairéticos – correspondem o gládio, o ritual do batismo; o esquema da descida dará o arquétipo do oco, da noite, da miniaturização, do enrodilhamento. O esquema agrega todos os arquétipos do colo e da intimidade. 57 DURAND. Op. cit. nota 2. p. 60. 58 Idem, p. 61. 60 Os arquétipos ligam-se a representações simbólicas – imagens – que se diferenciam segundo a cultura em que se acham inseridas, podendo pertencer a mais de um esquema. Enquanto o arquétipo é imutável, universal e constante, o símbolo é marcado pela pluralidade de sentidos e pela ambivalência. Observa-se que no esquema ascensional e no arquétipo do céu, por exemplo, permanece constante sua representação simbólica, no entanto, transforma-se de escada em flecha voadora. Os gestos reflexológicos agrupam-se sob dois regimes de imagens; o diurno e o noturno. Estes organizam-se por constelações de imagens isomórficas e representam diferentes modos de controlar o tempo. O Regime Diurno da imaginação tem como figura representativa a antítese. As constelações nele integradas polarizam-se em torno do dualismo luz/trevas. É um regime marcado pela angústia, pelo desejo de superação, de elevação. É o regime do trajeto representativo da censura, do cancelamento implicado nos reflexos posturais. Este regime tem como lógica o desejo de fuga do aqui/agora para o futuro, e tem na procura pela transcendência o antídoto do tempo. Neste regime, as imagens organizam-se em seis constelações isomórficas, distribuídas em dois grandes esquemas: o da verticalização ascendente e da divisão (separação). O esquema da verticalização ascendente tem como reflexo dominante o postural e o cume como seu arquétipo. Esse esquema reúne dois grupos antagônicos de motivações simbólicas: o primeiro reúne símbolos negativos, escuros e aterrorizadores, o segundo símbolos luminosos e positivos Os valores negativos organizam-se em três constelações de imagens e arquétipos: os terriomórficos, em que predominam as imagens de animais caracterizados pela agressividade, voracidade e agitação, definida por Durand como mobilidade inquietante, projeções da angústia diante da mudança, da fuga do tempo e da morte. A segunda constelação é a dos símbolos nictomórficos, imagens que lembram a agonia provocada pelas trevas como, a cegueira, a água negra, a sombra, a lua e o sangue. O terceiro grupo é o dos símbolos catamórficos, imagens que lembram a queda (destruição) interior, nas formas digestiva e sexual. 61 Os valores positivos representam a fuga diante do tempo e a vitória sobre o destino e a morte. Correspondem aos gestos de elevação, de verticalização e da conquista de uma dimensão além do tempo. São compostos pelos símbolos especulares, cuja convergência isomórfica são a luz e a visão monárquica, o som poderoso, o sopro criador, a palavra soberana. A sexta constelação agrega os símbolos de separação, contenção, os instrumentos bélicos (gládio, couraça, muralha). O esquema da separação cortante engloba os procedimentos mágico-ritualísticos, ritos de corte como a tonsura e a circuncisão. A esse simbolismo purificador agregam-se ainda a água austral – “substância da pureza”59 –, o fogo (prolongamento ígneo da luz), o ar (“pela limpidez e transparência, receptividade ao calor e ao frio”60). O Regime Diurno da imagem polariza-se em torno do gesto diairético, busca obsessivamente a distinção e são próprias a ele as estruturas esquizomórficas ou heróicas do imaginário: a idealização, o “recuo” autístico (abstração do meio ambiente e da animalidade), a transcendência, o geometrismo, a simetria, o gigantismo e a antítese polêmica. Diversa da atitude do gesto direcionado unicamente à iluminação, de oposição às trevas do Regime Diurno, é a atitude do Regime Noturno de imagens. Esse regime busca o antídoto para o tempo na intimidade, através da fusão com a substância, ou no constante reinício, no retorno ao ponto de partida. É na sucessão das fases temporais que se eufemizam os “terrores brutais e mortais em terrores eróticos e carnais”61 e o combate em gozo. O Regime Noturno é também composto por dois grandes esquemas: o esquema místico e o esquema rítmico. No Regime Diurno, a única finalidade é a ascensão até o cume; no Regime Noturno, a finalidade é a busca de um centro de intimidade, conjugando-se nele o desejo de união e a técnica de escavação visando alcançar esse centro de bem-estar. Se no Regime Diurno o sentimento 59 Idem, p. 172. 60 Idem, p. 176. 61 Durand. Op. cit. nota 2. p. 194. 62 predominante era a angústia da superação, representada pela antítese, no Regime Noturno é a inquietação do compromisso, da fusão do dia e da noite. O esquema místico relaciona-se à técnica do continente e do habitat. Nele, a queda no abismo eufemiza-se em descida lenta, cuidadosa, em direção ao calor da intimidade, centro matricial e nutriz. O abismo torna-se taça, continente da bebida que causa prazer. A imaginação da descida, trajeto que vai do oco à taça, tem como anseio a união no ventre digestivo (alimentar) ou sexual (o ventre incubador), ou seja, o local de fusão com as fontes da vida. Nesse processo de imaginação, “o simbolismo do leite, das maçãs e dos alimentos terrestres”62 remete à involução no corpo materno, invertendo seu valor negativo em positivo: a eufemização converte a descida em caminho para o absoluto. Sob os esquemas da descida reúnem-se os arquétipos que apontam para estruturas místicas ou antifrásicas: o redobramento e a perseveração. No redobramento, a conquista da interioridade do cosmo e dos seres é alcançado de duas maneiras: pela repetição cíclica, o eterno retorno, cujas fantasias digestivas e psicológicas são representadas pelo complexo de Jonas – antífrase do engolimento, transfiguração do despedaçamento, da voracidade –, a Gulliverização ou encaixe, cujo símbolo arquetípico é a taça (o continente), a valorização da essência (conteúdo alimentar ou químico). O segundo movimento do Regime Noturno de imagens é a evolução (perseveração), no qual se destaca o papel progressista do devir, da maturação biológica, cujas figuras centrais são o pau (ligado ao simbolismo da árvore) e o denário. Em torno do pau agregam-se os simbolismos messiânicos, os mitos históricos de confiança, de esperança na realização, da vitória (mitos do progresso). Sob a figura do denário reúnem-se os símbolos do retorno pertencentes ao esquema cíclico, integrados nas imagens do ciclo lunar e da divisão circular do tempo (ritual do calendário): o denário, duodenário, repetição cosmogônica do ato da criação – “dominação tranquilizadora das caprichosas fatalidades do devir”63, do destino enquanto fatalidade cega. Analisando-se ambos os regimes conclui-se que a essência da imaginação é o esquema dinâmico do gesto: no Regime Diurno, o movimento da própria 62 Idem, p. 203. 63 superação leva à separação, à distinção, à solidão caracterizadas na atitude autista e nas figuras esquizóides. No Regime Noturno, as figuras são epileptóides- sensoriais, caracterizando-se pela fidelidade, adesividade e viscosidade. Suas imagens são representadas por verbos como “prender, atar, soldar, ligar, aproximar, abraçar”64 que têm como motivação a atenuação das diferenças, o confortar. É um regime marcado pela crença na auto-capacidade de renovação, de superação a partir da própria essência do ser. Ao longo do seu processo de construção individual, a protagonista de Verão no Aquário habita, explora diferentes ambientes. Neles cerca-se de objetos, escolhe recantos, refúgios os quais ‘armazenam’ lembranças e sensações. Deste modo, ao lado do espaço sensível, cria-se um espaço imaginário, fruto das vivências de Raíza. Neste estudo, a casa é analisada como o espelho, o não-eu que reflete o ser nele vive/viveu, nele se refugia e também como o espaço que desempenha as várias funções inerentes ao ato de habitar : proteção, agregação e estabilidade. É principalmente nas imagens dos sonhos, dos devaneios da protagonista que se busca identificar a estruturação simbólica estudada por Durand. . 63 Idem, p.284. 64 Idem, p. 272. 64 3. O DESVELAMENTO ÍNTIMO ATRAVÉS DO ESPAÇO-SIMBÓLICO EM VERÃO NO AQUÁRIO 65 3.1 O momento histórico-social dos anos sessenta Minha bandeira (se tivesse uma) seria metade verde, metade vermelha.Esperança e paixão.Fervor e cólera. (Lygia Fagundes Telles) Segundo Mendilow, toda obra literária é um comentário do seu tempo. Tempo que tem no homem a sua representação e do qual a personagem ficcional é o reflexo, a imagem. Embora se reconheça em ambos – poética e personagem –, o caráter de simulação do real, a realidade criada pode ser considerada fonte de verdades, de versões, do imaginário, tornando-se a personagem uma imagem temporal do drama humano. Drama que acaba por se refletir sobre o cenário que se transforma em metáfora – linguagem simbólica – das angústias, das inseguranças do homem, justificando-se, então, o exame histórico da década de sessenta, encarando-o como mais uma fonte de apreensão da inter-relação espaço/personagem/simbólico. O romance Verão no Aquário, de Lygia Fagundes Telles, foi publicado em 1963, período em que se dá a efervescência política deflagradora de novas perspectivas econômicas e culturais e a consolidação de novos valores referentes à mulher. Efervescência que gera um clima de insegurança e instabilidade que acaba por refletir-se no comportamento dos indivíduos, tornando-os angustiados e indecisos, como Raíza, no rumo a dar a sua vida. No contexto social mundial, os anos 60 são marcados pela eclosão de vários movimentos sociais: o dos “hippies” americanos, pacifismo e revolução dos costumes, especialmente o sexual. Os inconformados com a guerra do Vietnã, os que lutam pelos direitos dos negros americanos, a descolonização dos países do terceiro mundo e também a luta das mulheres – que rompem com os tradicionais papéis da tia-professora, mãe-esposa, domesticada pelo pai, pelo marido e pelo sistema – são exemplos dos movimentos que contribuem na instalação do clima de movência e instabilidade social desse período É o tempo da juventude contestadora que tem no grupo britânico The Beatles um dos seus representantes. Este traz consigo um comportamento irreverente, profundas mudanças no gosto musical e o sonho de construção de um mundo novo. Época da conquista da liberdade sexual por parte das mulheres, impulsionada pelo aparecimento da pílula anticoncepcional, 66 do amor livre. Nesse contexto, surge o movimento “hippie” com sua concepção de amor à natureza e o combate à guerra expresso no slogan “Faça Amor, não faça Guerra.” Os jovens manifestam sua inconformidade com a situação sócio-política mundial pelo uso de cabelos longos e roupas coloridas, pelo misticismo e o uso de drogas. No Brasil, esse ideal de amor e justiça, fundamental para a construção do mundo novo, é expresso na música popular pelo grupo formado por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Milton Nascimento e outros. Tinha como característica o trabalho em grupo e a vida comunitária, cujos exemplos são o Grupo Mineiro e o Grupo Baiano, que divulgavam seus trabalhos como produção coletiva. Período do movimento tropicalista, do teatro engajado, todos buscando o coletivo e a vida em comunidade, baseados no sentimento de solidariedade. No campo político, o mundo polariza-se entre socialistas e capitalistas, sendo marcado significativamente pela Guerra Fria que opunha a URSS e EUA e pela corrida espacial. Na América Latina, cresce o movimento socialista, cujo principal nome é Che Guevara, representante do sonho de transformação, de mudança para uma sociedade com maior justiça social. No Brasil, desponta o Partido Comunista de orientação chinesa-maoísta, com opção pela guerrilha rural, responsável pela organização de grupos guerrilheiros. Todos esses movimentos comungavam de um mesmo ideal: a criação de um mundo de igualdade social e de solidariedade. É este conturbado panorama social, marcado pela instabilidade, pela movência, durante um verão de calor intenso, viscoso e desfibrante, que cerca a heroína de Lygia Fagundes Telles. À instabilidade social, soma-se o conflito pessoal pelo enfrentamento entre os valores familiares tradicionais aprendidos na infância e os novos valores de liberdade e de estruturação da família enquanto instituição. Esses elementos somados despertam em Raíza a sensação de “areia movediça fugindo debaixo dos pés” (p. 19). A perplexidade diante do conflitado ambiente externo gera a imobilidade. A necessidade de segurança e de estabilidade levam a heroína de Lygia Telles a refugiar-se na casa e em si própria na tentativa de desenvolver mecanismos que lhe permitam participar do mundo exterior, rompendo 67 com o isolamento que a impede de estabelecer relações satisfatórias com os que a cercam. O devaneio é o meio que Raíza encontra para transformar em imagens os sentimentos que a aprisionam e, assim, ‘quebrar’ o aquário de proteção e isolamento que construiu para si. A luta de Raíza para libertar-se é acompanhada através da análise do ambiente que a cerca e das imagens que surgem em decorrência da sua atividade introspectiva, as quais acredita-se, sejam manifestações simbólicas de um eu escondido no inconsciente e que é recuperado através delas. 3.2 O espaço simbólico em Verão no Aquário 3.2.1 A figuração do espaço Para configurar o cenário é preciso descrever, interromper o fluxo da narrativa, trazendo o espaço para o primeiro plano. Na narrativa, a descrição serve de complemento da narração. É um fragmento de texto que ajuda a organizar, esclarecer e mostrar a realidade ficcional. Em O Que É Uma Descrição?, Phlippe Hamon define-a como “o espaço onde se põe em conserva, onde se armazena a informação, [...] onde personagem e cenário [...] entram em redundância: o cenário confirma, precisa ou revela a personagem [...] ou, então, introduz um anúncio (ou engano) para o desenrolar da ação”65. Para examinar a descrição, Hamon vale-se de exemplos colhidos na obra de Zola, considerado um típico autor realista- descritivo. Nesse mesmo artigo, afirma ainda que a descrição pode se realizar de duas maneiras: pela observação ou pela descrição técnica. A descrição construída a partir da observação é preponderantemente visual, é diretamente do olhar da personagem que o espaço é construído. Neste tipo de descrição a personagem é o “voyer” que se encanta, fascina pelo que vê e, assim, abstraída da intriga descreve o objeto/espaço contemplado. A descrição sob a forma técnica é informativa: a personagem comporta-se como um “expert”, age 65 GUYON, Françoise. HAMON, Philippe. SALLENAVE, Danièle. Categorias da Narrativa. Lisboa: Vega, 1972. O Que é uma Descrição? p. 74. Grifos meus. 68 como um professor ou instrutor, utiliza-se de vocabulário especializado, enumera utensílios e dá pormenores do funcionamento de um objeto. A figuração do espaço em Verão no Aquário se dá através do olhar da protagonista. Para retratá-lo, a narradora comporta-se, ora como o ser contemplativo que se debruça numa janela localizada em posição elevada, ora como o indivíduo desocupado ou curioso que, ao andar pela casa, espia por portas entreabertas, adentra pelos vários cômodos revelando o seu interior. Não há descrição exaustiva do ambiente; detalhes dos vários locais avistados ou visitados são fornecidos em diferentes momentos do texto, exigindo um trabalho de montagem do espaço. E pensando em ir para o meu quarto achei-me defronte do escritório da minha mãe. A porta estava entreaberta. [...] Ela pousou as mãos no teclado da máquina. Tirou os óculos. [...] Inclinei-me para cheirar o solitário botão de rosa espetado no vaso. [...] Havia duas xícaras [de chá] na mesa. [...] Mordisquei uma torrada. (p. 106) Do fragmento pode-se deduzir: o tipo de trabalho da personagem, seu gosto pela discrição nos enfeites, a classe social – hábito do chá – e a presença/ausência de uma terceira pessoa – duas xícaras de chá. As indicações cênicas, segundo Osman Lins66, servem para uma subjetivação do cenário, contribuem para explicar a personagem. Os objetos indicam preferências, constroem, segundo o estudioso, uma realidade intuitivamente apreendida em torno do espaço descrito, correlacionando as coisas e o comportamento dos seres ficcionais, o que valoriza a figuração do espaço dentro da narrativa. Ainda segundo Lins, é o espaço restrito – um quarto, uma casa –, os objetos escolhidos, a disposição e a conservação dos mesmos que revelam a personagem, enquanto que o exterior, como o bairro em que mora, a situação geográfica, as edificações são reveladores de inserção social. Osman Lins afirma ainda que pode haver uma influência do espaço sobre a criatura ficcional, quase sempre em nível psicológico. A pressão exercida pelo espaço sobre a personagem pode desencadear ou propiciar as suas ações, agindo este elemento como um 66 LINS, Osman. Lima Barreto e o Espaço Romanesco. São Paulo: Ática, 1976. 69 “liberador de energias secretas [...], como um provocador da ação”67, relacionando- se, então, o espaço com o imprevisto, a surpresa ou com o anúncio de um fato. Na estruturação espacial de Verão no Aquário, nota-se ainda ser a água o elemento predominante na narrativa, aparecendo de modo implícito, na imagem do aquário já no título do romance. Ao longo do texto, ela (re)aparece de várias formas: fonte, nuvens, perfume – água-de-colônia –, chuva, mar, no banho ou cristalizada sob a forma de espelho. Isso pode ser observado quando Raíza descreve o banho de Marfa: “Ela abriu a torneira de água quente. [...] E inclinando-se para trás, afundou a cara na água. Na superfície da banheira ficou a espuma branca boiando sobre a imagem de uma afogada. [...] Abri suavemente a torneira e pensei na fonte” (p.57; 58). Água, luz e sombra, vidro, transparência, cristais, despertam lembranças e fazem com que o texto se povoe de imagens, valorizando sobremaneira o sentido da visão na construção do ambiente. Observa-se também um número muito pequeno de cenários externos os quais funcionam, principalmente, como indicadores da inserção social das personagens a eles ligados. Isto é observado quando se compara a descrição que Raíza faz da paisagem avistada de sua janela e o modo como retrata o bairro em que Marfa e André residem. O bairro de classe média em que Raíza mora, marca- se pelo isolamento: as pessoas permanecem restritas aos seus quintais, ao seu “metro quadrado” fechado, como pássaros em suas gaiolas. As roupas lavadas e estendidas no varal do quintal do pensionato parecem dotar o bairro do mesmo caráter de limpeza . No bairro de André, no entanto, crianças e adultos fazem do espaço público um local de inter-relacionamento. O bairro adquire uma coloração cinza, um aspecto encardido, sugestivo de pobreza, de limpeza deficiente e, também, de melancolia, de abandono, entrevisto no cão de rua que segue Raíza em um mudo pedido de atenção. Os cenários exteriores conotam ainda aspectos do interior das personagens, tornando-se o cenário concreto um fator a mais na configuração do cenário fictício, representado pela subjetividade das personagens. Na obra de Lygia Fagundes Telles, o espaço interno prepondera sobre o externo: interno da casa, do indivíduo. Por essa razão, o espaço privilegiado nesta 67 Idem, p. 100. 70 análise é a casa. Em Verão no Aquário, são três as casas referidas pela narradora: a casa em que a protagonista passou sua infância, o apartamento, onde viveu durante a adolescência e a casa de André, o homem por quem a protagonista- narradora se diz apaixonada. Neste estudo, a casa é pensada como um espaço com o qual o ser interage, transformando-se o entorno em um espelhamento do ser que o habita. Logo, supõe- se ser possível conhecer o indivíduo através do ambiente configurado por ele. As representações simbólicas e os sentidos antropológicos materializados nesse ambiente são utilizados também como meio de (re)conhecimento do indivíduo inserido naquele ambiente. A casa, como o homem, é orientada pela verticalidade, pela duplicidade de ser aéreo e terrestre, em que se opõem luz e sombras, porão e sótão. As muitas divisões da habitação assemelham-se aos meandros do espaço íntimo os quais revelam trajetos, desencadeiam movimentos. É viajando através das casas nas quais viveu/vive, percorrendo seus aposentos que a protagonista se desvela. Segundo o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, casa é: edifício de um ou poucos andares, destinado, geralmente, à habitação; moradia; cada uma das divisões de uma habitação; dependência, quarto. Percebe-se pelos dois conceitos explicitados que casa é um conceito pluridimensional: um edifício ou um único quarto, ou ainda conforme Bachelard, pode ser um espaço imaginário que transmita ao ser a sensação de abrigo e proteção. Esse talvez seja o princípio primordial que faz com que o andarilho considere como casa o trecho sob o viaduto no qual costuma dormir. Simbolicamente, a casa é o útero que permite ao ser desenvolver- se antes de se lançar ao mar, onde pode “ser devorado por um peixe maior” (p.131). Por seu turno, o aquário apresenta-se como o palmo de água, onde a vida corre tranqüila, comodamente, sem riscos, sem lutas. Conforme foi mencionado anteriormente, Verão no Aquário é classificado por alguns críticos como romance de aprendizagem, de formação, do qual a história de Wilhelm Meister, de Goethe, é considerada o protótipo. Nesse tipo de romance é dada ênfase ao desenvolvimento interior do protagonista, resultante de sua interação com o mundo exterior. Durante esse processo, a personagem amadurece 71 e se torna adulta. A heroína de Verão no Aquário, diferentemente do herói masculino de Goethe, ou da protagonista Joana (Perto do Coração Selvagem), de Clarice Lispector, não se afasta do seu círculo social, o que – segundo os críticos – impede seu pleno desenvolvimento e a predispõe a aceitar uma solução conservadora para sua vida: “Raíza se resigna à [...] perspectiva burguesa [...] aceita as sugestões de vir a casar-se com o médico que “a salvou”, [...] acomoda- se tristemente”68, afirma Henrique Ávila. Restrita à casa, Raíza substitui o mundo exterior pela viagem ao interior de si própria: desce às profundezas de sua consciência como alguém que desce ao inferno para exorcizar seus males e, assim renovada, retornar à luz. Nesse processo, a protagonista tenta, pela recuperação do seu passado, entender os contraditórios sentimentos que a ligam à mãe (agressividade, ciúme, amor), encontrar um sentido para a sua vida dividida entre o amor sem compromissos de Fernando e o amor constante e seguro que imagina ter encontrado em André e, ainda, realizar-se pela criação artística, representada pelo estudo de piano. 3.2.2 A casa da infância Jamais tornei a ver [...] esta estranha morada... Tal como a encontro em minha lembrança [...] não é uma construção; está incorporada e repartida em mim [...] aqui um cômodo, ali um outro [...] tudo está disperso em mim, os quartos, as escadas [...] em cuja obscuridade avançávamos como o sangue nas veias. (Rilke) 3.2.2.1 O Sítio do aconchego O inquietante sonho com o pai, já falecido, no qual ele “tinha uma rosa no lugar do rosto” (p.07), desperta as lembranças de Raíza. As reminiscências levam- na até a casa de sua infância. Localizada em uma chácara, a antiga casa era cercada por um jardim irrigado por uma pequenina fonte “que brotou à sombra da figueira brava”. Fontezinha escassa, de fio d’água débil, “tão escasso que [Raíza] 68 ÁVILA, Henrique. Op. cit. nota 23. p. 159. 72 tinha vontade de recolher a água que corria para devolver-lhe novamente”, uma forma de aumentar-lhe o fluxo e impedir o desaparecimento da fonte. Fiozinho de água que acaba por secar “num verão violento” (p. 44). Esta imagem sugere uma conotação edênica à paisagem de sua infância. Um paraíso, um mundo marcado pela fragilidade e pela finitude, ‘ameaça’apreendida na fonte preste a desaparecer. No interior da casa, Raíza recorda as possibilidades que esta lhe oferecia: “eu poderia descer [ao] quarto de tia Graciana”, [...] “podia ainda ir à cozinha e conversar com Dionísia” ou, ir adiante, onde “ficava a saleta da minha mãe” [...].Lá, “eu podia estender-me no chão e [...] ficar desenhando nas folhas que ela me atirasse” (p. 9; 10). Embora a casa lhe oferecesse todas estas possibilidades e todos os outros cômodos parecessem mais alegres que o sótão, era lá que eu queria ficar, sentada ao lado do meu pai, [...] ao lado de tio Samuel. [...] com sua loucura. Tio Samuel recortava com sua tesourinha de unhas [...]. E meu pai limpava os livros [...] para colocá-los na estante. Cada livro que punha na prateleira fazia a estante vacilar. (p.9; 8) Ao classificar o sótão, o refúgio em que seu pai, o tio Samuel e ela costumavam ficar como menos alegre que o restante da moradia, a personagem torna evidente a divisão da casa em dois mundos: um mais alegre, dominado pelas mulheres – Patrícia, tia Graciana e Dionísia, do qual Raíza desejava participar – e um outro, menos alegre, do qual sentia-se parte. É este espaço menos alegre que insere a personagem na casa e no mundo. É na face redonda e cristalina do espelho, guardado no sótão, que felicidade e segurança se condensam e se opõem ao mundo externo e ao espaço mais alegre da casa que hostilizam os habitantes do sótão. Impressão que a protagonista confirma: “a casa era enorme mas nós três não cabíamos nela. Mas cabíamos dentro do espelho. E éramos felizes” (p. 11), felicidade marcada pelo medo da separação, prenunciada na fragilidade do objeto e na palidez dos seres nele retratados. É no sótão, entre “móveis imprestáveis e caixotes de livros em que os bichos cavavam galerias” (p. 11), em que tudo tinha um ar de decadência, de coisas prestes a se desfazer, que se escondia a “árvore detestável” (p. 11) da família, constituída de três membros: tio Samuel, o louco; Giancarlo, o bêbado; e Raíza, a 73 criança. Seres aceitos em silêncio, não mencionados, principalmente os dois irmãos, que deveriam permanecer longe das vistas. Os moradores do sótão, cada um a seu modo, não se enquadram nas leis da sociedade, logo, precisam ser isolados dos ditos seres normais. Tio Samuel é um tipo manso e calado. Passa seus dias a “recortar as damas do baralho” ou “criando e destruindo os bonecos de mãos dadas, feitos de jornal” (p. 8; 41). Tem o hábito de “tirar os óculos para ouvir melhor” (p. 9), gesto que parece indicar seu retorno ao mundo objetivo, sendo estes os poucos momentos em que deixa de picotar suas misteriosas criaturas. Apesar da aparência tranqüila, Samuel desperta medo. Marfa, a filha de Samuel, ao falar sobre o pai, recorda esta sensação: “um homem que me dava medo quando eu era criança” (p.12), sentimento não compartilhado por Raíza. Após a morte do irmão, Giancarlo, e a transferência da família para a cidade, Samuel permaneceu na antiga casa: “morava lá [com] Julião, um preto coxo que cuidava dele” (p. 41). Deixá-lo na chácara é ainda um modo de separá-lo dos outros membros da família. Com o agravamento do seu estado de saúde, tio Samuel, é internado em um sanatório. . “Ele nem me conhece mais, compreende?” (p. 116). Com esta frase, Marfa define o estado mental de Samuel. O isolamento do tio, iniciado com a opção pelo sótão, finaliza-se com o enterramento/internamento físico no sanatório, uma vez que sua mente, há muito tempo, já vivia para além do mundo dos homens que não o aceitavam e que ele não reconhece mais. O afastamento definitivo do exterior simula a morte, um enterramento simbólico. Este encerra o seu vínculo com o mundo exterior, destino estendido à casa e aos objetos que o cercavam: “a poeira cobriu tudo. Cobriu também os móveis, as cortinas, os tapetes, a poeira cobriu tudo. Cobriu também os dois [Samuel e Julião] que passaram a fazer parte da casa como o assoalho ou o lustre.” (p. 41). O cobrir-se de pó lembra o esquecimento, que é também um modo de morrer/matar. O enterramento simbólico da casa e de seus ocupantes se consolida quando Patrícia vende casa e chácara, ato que parece definir o final do tempo de brincadeira, de sonhos, de fantasias e de aconchego construído pelos moradores do sótão. 74 Samuel, o insano, é o ser irracional, “o instinto ativo e capaz de sublimação, mas também a impulsividade cega e a inconsciência” 69. Por suas extravagâncias e delírios é uma força capaz de subverter a ordem: o perigoso, que se opõe ao perverso, oriundo da ordem social. Desligado dos valores materiais e conhecedor de verdades não compreendidas pelos racionais, provoca o medo. Traz em si também o princípio da transcendência. Subjetividade contraditória, o tio ´com seus bonecos de papel que recorta e joga fora é, ao mesmo tempo, criador e ser destrutivo: “Ele era o princípio e o fim. Inútil buscar sentido na tesoura que varava o dia e a noite criando e destruindo os bonecos de mãos dadas” (p. 41), símbolos de um mundo solidário que persiste apenas na mente de um visionário. Talvez seja a visão deste mundo imaginário que une os dois irmãos, levando-os a refugiar-se no mesmo espaço, no mesmo centro de bem-estar da casa. Giancarlo, pai de Raíza, é o segundo membro do grupo. Quando bebe, refugia-se no sótão, limpando os livros: desencaixota, tira a poeira e os bichos que ameaçam destruí-los e arruma-os na estante. Sonhador, deixou a terra natal para construir uma vida melhor numa terra estranha. Nela, trabalhou, constituiu família, fundou o próprio negócio, mas traído por um falso amigo e por sua pouca vocação para lidar com assuntos práticos, restou-lhe apenas o título de “estrangeiro amedrontado, vago e sonhador” (p. 33), conferido pela tia Graciana, e o hábito de beber em excesso. Com paciência, conduzia Raíza por aventuras imaginárias: como era bom procurar com ele, nos labirintos dos quebra-cabeças, onde estaria o caçador ou o cachorro, tínhamos que encontrá-los nas florestas, nos rios, nas nuvens... [...]. Era o primeiro a encontrar a cara do caçador bigodudo, disfarçado num tronco de árvore. Ou o focinho do cachorro em meio dos pedregulhos (p. 33). Além das viagens imaginárias e brincadeiras, Raíza lembra o costume do pai de (re)inventar histórias, como o novo final, criado por ele, para a fábula da cigarra e da formiga: “não chore, Raíza, depois a cigarra encontrou um buraco quentinho e lá ficou morando” (p. 117). Vale-se também das histórias para não responder as perguntas da filha: “Que jardim é este?” [...] Teve um sorriso reticente. [...] “Ah, Raíza, esse jardim...” (p. 9). Foge das perguntas como costumava fugir do mundo: para responder utiliza a imaginação, para evadir-se do mundo faz uso do álcool. 69 CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Moraes, 1984. p. 351. 75 Nessas ocasiões, Giancarlo, com seu hálito de hortelã, sentava-se “no rolo de um tapete que Dionísia levara para o sótão [...] sorria vagamente, como se estivesse mergulhado num sonho” (p. 34). Todo ser necessita de um canto de solidão, afirma Bachelard e, ao sentar-se no tapete, Giancarlo parece embarcar em um objeto mágico que o transporta para um mundo só seu, impenetrável aos demais, em que pode, finalmente, estar em harmonia consigo próprio, o que seu sorriso parece traduzir. Este representante da árvore detestável, por sua ligação com o álcool, elemento capaz de embotar o racional, é também símbolo da dualidade: – é ser de criação e de destruição: é masculino e solar enquanto força vital e feminino quando ligado ao princípio do sono, do esquecimento, da terra. O álcool é, segundo expressão utilizada por Bachelard, “a água que arde, a água do fogo capaz de inflamar-se com uma pequena fagulha”70. Ingerido pelo homem, afirma o filósofo, transmite a ele suas características intrínsecas: é capaz de liberar um fogo calmo, domesticado ou brincalhão, que liberta o ser de si próprio, que extasia os olhos e aquece o coração, despertando a capacidade de sonhar. Ou tender para a profundidade, para a busca da estabilidade que prepara o pensamento criativo (o fogo da vida), racional. Mas este mesmo elemento pode tornar-se o fogo diabólico no centro da roda familiar, levando a morte e a destruição pela intensidade de suas chamas. Ainda conforme o autor, a porção ardente do álcool produz embriaguez, alegria, leveza. A água apaga o fogo, produzindo torpor, esquecimento e morte. A dupla materialidade do álcool parece tomar posse de quem o ingere: sob efeito da porção ardente, o indivíduo torna-se vivaz, falante, excitado. Ao final, sob efeito da água, deprime, entorpece, perde o brilho e a alegria. Para Giancarlo, o álcool, como princípio criativo, desperta-lhe a imaginação, a possibilidade de sonhar com um mundo mais solidário. A porção água representa uma maneira de esquecer a desilusão com o mundo e os seres humanos, como se pode observar a seguir: “nas raras vezes que saía, voltava tão sonolento, tão estranho que [Raíza] ficava a vigiá- 70 BACHELARD, GASTON. A Psicanálise do Fogo. Lisboa: Litoral, 1989. p. 91. 76 lo até que a sonolência passasse” (p. 34), sono que representa uma morte simbólica, ainda que temporária. O último componente do grupo é Raíza, a criança: simplicidade, espontaneidade, pureza são qualidades atribuídas a este ser. Da infância vivida na chácara, além do hábito de recolher-se ao sótão com o tio e o pai, Raíza recorda outros aspectos: “minha prima mais velha era quem me dirigia nas antigas brincadeiras e embora eu me rebelasse com sua autoridade, no fundo do coração queria que fosse assim” (p. 191). Da influência exercida pela prima, lembra as tentativas que faziam para pegar os bombons de tia Graciana: “Marfa [entrava] nas pontas dos pés para roubá-los enquanto eu esperava lá fora” (p. 30). Este comportamento de agente e observadora parece estender-se à vida adulta de ambas: enquanto Raíza pensa, planeja, mas não executa, Marfa vai alcançando os objetivos a que prima se propõe, mas não põe em prática: trabalhar e casar-se. O modo de ser das duas jovens, de uma certa maneira, lembra o relacionamento de Giancarlo e Patrícia: Giancarlo sonha, planeja, Patrícia executa, produz. Além da amizade com a prima, Raíza recorda atividades típicas da vida das meninas de sua classe social: os estudos de piano, com eles a lembrança de Dona Leonora, a professora, que costumava bater com o leque na sua mão quando se distraía durante as aulas, do som metálico das agulhas “da mulher dos tricôs” (p. 10) com quem a professora costumava conversar enquanto Raíza tocava. A recordação do piano desperta alegria e tristeza: emocionada, recorda a alegria de menina ao descobrir o poder das próprias mãos, os movimentos precisos na execução musical. Dele vêm também a tristeza e a decepção, sentidas ao perceber que a magia passara e já não tocava como antes, frustrando o sonho de tornar-se pianista. Da infância, vivida na antiga casa, fica-lhe a sensação de aconchego, proteção e proximidade proporcionada pelo sótão. Ao perdê-lo, resta o vazio, o oco, o sentimento de incompletude que tenta em vão preencher. A infância é considerada o período da inocência, “o estado anterior ao pecado [...] o estado edênico”71, está também ligada aos ciclos de renascimento, do eterno retorno ao centro matricial. Todo recomeço simula o renascer, o adquirir as características de potencialidade da criança, psicologicamente “pode indicar uma 71 CIRLOT. Op. cit. nota 69. p. 302. 77 vitória sobre a ansiedade e a conquista da paz interior e da autoconfiança”72. Por sua capacidade de viver como realidade um mundo de fantasia, desvinculando-se do mundo sensível, a criança liga-se ao transcendente, ao princípio da luz e do aéreo. Como ser imaturo, em formação, representa a potencialidade, o devir, a esperança. No entanto, ao final da infância, da criança inocente que Raíza foi, restou apenas o “retrato de uma menina abraçada a um gato” (p. 25) e a lembrança das alegrias vividas na chácara. O visionário, o sonhador e o imaturo, os três moradores do sótão, têm em comum a evasão pelo sonho e pelo devaneio, o que lhes permite participar de um espaço para além do mundo objetivo. A criatividade, a abstração, lhes confere um caráter de transcendência, aproximando-os da luz e do meio aéreo. Inseridos em uma sociedade burguesa, em um mundo voltado para o lucro, o grupo simboliza aspectos desvalorizados e em vias de extinção no meio social em que vivem. Isto pode ser intuído pelo ambiente que cerca o grupo: móveis vacilantes e a fragilidade dos objetos que parecem prestes a desintegrar-se. A poeira que cobre os livros simula um enterramento lento, sempre adiado pelo pai que insiste em retirá-la, em jogar fora os vermes que ameaçam os valores e a cultura representada pelos livros. Estes gestos são o seu modo de lutar para preservar a afetividade, a solidariedade que caracterizam o seu mundo. O círculo dourado do velho espelho parece proteger esses sentimentos, ao circundar a imagem dos três sonhadores, apesar da “da cor amarela [de] cristal doente” (p. 11) que transmite aos rostos dos.seres renegados. Seres que se apóiam mutuamente e retiram da proximidade física dos seus semelhantes força e esperança para sobreviver. O sótão, segundo Durand, é o local “do amuo absoluto”73, o museu dos antepassados e lugar de regresso. Assim, apesar de sua localização elevada, o sótão liga-se ao esquema da escavação, da involução e aos arquétipos da intimidade. É também o local da vida outonal, da vida que seca lentamente. Esses aspectos são observados no comportamento dos moradores do sótão: é nele que os três repousam, que se recolhem em si mesmos e desfrutam da sensação de 72 Ibidem. 73 DURAND. Op. cit. nota 2, p. 245. 78 proteção e bem-estar. Os caixotes cheios de livros envelhecidos sugerem tesouros e mistérios trazidos de um passado remoto, confirmado pelo mobiliário antigo que os cerca, pelas galerias abertas nos livros, simulacros de túneis ligando presente e passado ou o mundo sensível ao insensível e à morte. Paisagem e habitantes parecem estabelecer entre si uma relação íntima. O ambiente natural representado pela chácara supõe sol, árvores, fonte que são, ao mesmo tempo, símbolos do primordial, da elevação e do refúgio, do masculino e do feminino: segundo Durand, a árvore por sua verticalidade, liga-se ao princípio luminoso, masculino e fálico. Ao mesmo tempo, pela característica de renovação cíclica, liga-se ao ciclo feminino, ao retorno à mãe, ao centro do repouso. Da árvore origina-se o bosque sagrado e a floresta representantes da “cosmização do arquétipo da intimidade feminóide”74, fechada, protegida. A fonte de água, afirma o estudioso, que por sua transparência deixa perceber a profundidade, constitui-se também em uma barreira protetora da intimidade. A barreira cristalina liga-se ao mesmo simbolismo de abrigo e de conforto representado pelo sótão. A ligação entre a vida do sótão, o ambiente natural e o lento adormecer da natureza parecem provar-se na coincidência entre a morte de Giancarlo e o recolhimento da fonte do jardim, fato pressentido por Raíza: “quando vi que o débil fiozinho d’água tinha desaparecido [...] tive então a certeza de que meu pai ia morrer assim como a fonte, silenciosamente, no meio da noite.” (p. 44) O falecimento do pai representa o rompimento do círculo dourado que os protegia, ruptura que se amplia ainda mais com a ida do tio para o sanatório, completando-se mais tarde com a venda da casa: “a chácara não é mais chácara, minha mãe vendeu os fundos para uma serraria, só ficamos com a casa. Agora vai vender a casa, a minha querida casa com meu sótão e meu espelho...” (p. 41). Estes fatos marcam o final da infância e o princípio da adolescência de Raíza. A chácara representa para a Raíza menina a “imagem do espaço feliz, do centro paradisíaco”75, contém os elementos, que segundo Durand, estão ligados à imagem do lugar sagrado: a nascente de água e a árvore. Esses elementos 74 Idem, p. 246. 75 Idem, p. 245. 79 integram a infra-estrutura do lugar santo, do refúgio, “[do] receptáculo geográfico”76, do qual o ambiente natural é a base. A partir dos seus elementos, o sítio adquire a noção de centro, de microcosmo fechado e protegido, de útero primordial – o local provido dos “bens essenciais”77 – para o pleno desenvolvimento do ser e que, segundo Bachelard, caracterizam a casa natal. A composição do espaço da infância aponta para um ambiente que desempenha as funções de proteção, de aconchego e de segurança. No entanto, pressente-se um fator de desequilíbrio nesse espaço paradisíaco: a fragilidade. Característica que aparece na fonte d’água, no aspecto doentio do antigo espelho, o guardião da unidade dos três moradores do sótão e também na descrição que Raíza faz do pai. Segundo a personagem, Giancarlo é “delicado como uma folha murcha, dessas que caem ao primeiro vento” (p. 11). A hortelã, cujo odor, denota a presença paterna, guarda esse mesmo traço de delicadeza. O dicionário de Aurélio Buarque de Holanda define-a como sendo: “erva humilde, [...] de caule delgado, com folhas delgadas e moles”, características que parecem corroborar a fragilidade paterna. A esta soma-se o escasso fiozinho de água da fonte e ao espelho envelhecido, na composição do quadro de vulnerabilidade do espaço em que Raíza vive. Logo, a felicidade existente nesse paraíso marca-se pela tensão, pelo medo da perda e pela sensação de finitude eminente. Essas impressões são introjetadas pela protagonista, gerando insegurança e dificuldade para enfrentar a mudança para a cidade. 3.2.2.2 A mocinha do porão “Exatamente debaixo do sótão da nossa antiga casa” (p. 10), localizava-se o quarto de tia Graciana, aposento que parece ter sido transferido, sem modificações, para a casa da cidade. As alterações do ambiente são apenas as decorrentes do envelhecimento dos objetos, razão pela qual o quarto que Graciana ocupa no apartamento é analisado como uma continuidade deste da chácara. As mudanças na aparência física da personagem, bem como no comportamento da mesma, atestam a passagem do tempo, embora a tia prefira viver como se o passado ainda 76 Idem, p. 246. 80 fosse presente, num esforço para manter viva a história de um tempo feliz que permanece vivo apenas nas lembranças dela. A felicidade então experimentada parece desintegrar-se juntamente com os objetos do quarto de Graciana. Quando menina, Raíza costumava ir ao quarto de Graciana para conversar. “Um mundo silencioso e escuro” (p. 27), de uma frescura cheirando a mofo e à umidade, como uma mala fechada por muito tempo, ou um porão, no qual a tia se ocupava com essências, costuras e guloseimas. “Era emocionante vê-la indo e vindo com seu avental azul, toda atarefada com as experiências nos tubinhos de líquidos turvos”, parecendo não se dar conta dos “móveis carunchados e [das] cortinas carcomidas por traças”, refere Raíza. Como se tudo houvesse parado no seu tempo de mocinha, Graciana cantarola, distraidamente, as mesmas cantigas antigas e mantém o mesmo papel de parede com “vagas guirlandas de miosótis que descem enleados em laçarotes de fitas” (p. 10). Os móveis e as cortinas roídos pelos bichos, o papel antigo, mais adequado a uma menina do que à mulher adulta, sugerem ser este, já de longa data, o espaço reservado a Graciana na antiga casa. Tia Graciana “era gorda e atarracada, [mas tendo] mãos e pés muito pequenos, considerava-se miudinha e frágil. [...] O lábio superior demasiado curto, mal cobria os dentinhos salientes, com as pontas sempre de fora e que davam a sua fisionomia de queixo gorducho uma certa graça de criança desatenta. [...], o lenço amarrado na cabeça [...] à maneira das camponesas, mal escondia os rolinhos do cabelo pintado e ralo.[Cabelos que] ela prendia todos os dias como se tivesse pela frente alguma festa” (p. 28; 32; 28; 74). Percebe-se em Graciana um ar de expectativa, de preparação para algo sempre adiado, um sonho que a personagem parece realimentar a cada dia. Ao longo da caracterização da personagem nota-se também a persistência de um traço infantil e de imaturidade: uma mente de criança em um físico de meia-idade. O seu apego ao passado, o seu desejo de imobilizar-se em um tempo pleno de vida, é uma maneira de “fazer reviver, ao menos por instantes, os que já [a] abandonaram [...] e de não deixar apagar os afetos, os mil fatos vividos, as brincadeiras, as vozes e os gestos [...] da infância, [...] as lembranças das quais [é a única guardiã]”78. Para continuar a viver 77 BACHELARD. Op. cit. nota 1. p. 28. 78 BOBBIO, Norberto. O Tempo da Memória: De Senectude e Outros Escritos Autobiográficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 30 e 31. 81 essa ilusão de felicidade, Graciana afasta-se da realidade, age como se o mundo acabasse na porta do seu quarto, comportamento que tende a exacerbar-se com o passar dos anos. Vários são os artifícios utilizados pela personagem para imobilizar o curso do tempo: nega-se a trocar a decoração do quarto (mantém a mesma que trouxe da chácara), a consertar “o relógio de madrepérola [...] parado há não sei quantos anos nas três horas” (p. 103), reforma sempre os mesmos vestidos do seu tempo de mocinha e nega-se a revelar a própria idade. Para fugir da mesmice, da falta de objetivos e da solidão que caracterizam sua vida atual, Graciana, (re)conta sempre as mesmas histórias dos tempos abastados – “Mamãe comprava nossos vestidos na Madame Voiska, famosíssima naquele tempo” (p. 31) –, recorda antigos namorados como Melcíades, Simonian e “uma verdadeira corte” (p. 33) que se formava ao seu redor durante os bailes e festas que freqüentava, sob o olhar, entre vigilante e complacente, da mãe. Inexorável, porém, a passagem do tempo imprime um aspecto de degradação ao ambiente que cerca Graciana. As cortinas antes carcomidas pelas traças, aos poucos, adquiriram uma cor indefinida e somente em “algumas estrias rosadas nas pregas mais fundas”, pode-se identificar a que cor que possuíam anteriormente. Os orifícios das traças transformaram-se em rasgões. Para juntar os dois lados, a personagem cerze os “os rasgões maiores [...] com mimosos pontinhos cor-de-rosa, [...] os rasgões menores, espera que aumentem, para então consertá-los, como já fizera com os outros.” (p. 29), em um esforço inútil. Apesar do aspecto, insiste em mantê-las, não aceita lavá-las por medo que se desfaçam sob efeito da água e, menos ainda, trocá-las por novas Os demais objetos que cercam Graciana também apresentam sinais de desgaste: os frascos de cristal perderam o brilho e já não contêm perfumes autênticos, “o móvel dos cálices rosados [perdeu] toda a graça espetado assim no meio do quarto”, o antigo leque de seda e varetas de marfim, perdeu toda a cor e jaz “mais exangue que um cadáver no seu estojo de veludo lilás” (p. 29). Veludo, seda, marfim, nas suas cores vagas, quase indefinidas, mostram a lenta transformação. As varetas do leque lembram os ossos de um esqueleto e o estojo assemelha-se a um esquife em miniatura que o pó das cortinas parece preste a 82 enterrar. O móvel antigo, empertigado, parece resistir a todo custo em dobrar-se ao efeito dos novos tempos, perde o brilho, mas não a postura ereta, em meio à devastação instalada ao seu redor. A personagem, no entanto, age como se não percebesse o trabalho que o tempo exerceu sobre o seu ambiente: reforma as mesmas roupas, no mesmo manequim de pano, continua a produzir suas essências com odor de “jasmim mofado”. As caixinhas de porcelana – “com miosótis na tampa” (p. 29), presente de um moço casadoiro, ou aquela com um Pierrô –, lembram as caixinhas de remédios com que Raíza brincava quando criança. Simulam cofres de tesouros miniaturizados, falam de segredos inocentes como convém a uma mocinha. Bibelôs quebrados, enfeites, caixinhas, móveis fora de moda e carunchados, todos cobertos pelo pó, atulham o quarto de Graciana, dando-lhe um aspecto de depósito de coisas descartadas, de um porão. Também o ambiente descrito como fresco, silencioso e envolto por uma obscuridade rosada, cheirando a umidade e a mofo reforçam esta impressão. Habituada à semi-obscuridade do porão, Graciana teme a luz, reveladora de verdades que não quer saber como a aparência envelhecida, o desgaste da própria figura, revelada na aparência das suas vestes. À medida que aumenta o tempo passado no quarto, suas roupas tornam-se cada vez mais informais, perdem a forma, os tecidos parecem mais finos, como se gastos pelo uso. Na casa da chácara, Graciana usava um avental colorido para proteger o vestido, vestimenta que foi substituída por batas de gaze, de mangas largas ou, “trajes ligeiros, mistos de vestidos e roupas íntimas meio encobertos por uma bata [...] indecisa, que fazia pensar numa [...] saída de baile” (p. 127). Trajes indecisos como a dona que, sendo adulta, mantém ainda traços infantis e mexe com seus vidrinhos, essências e guloseimas como quem brinca de laboratório. O desgaste do entorno da tia estende-se também ao seu rosto: a pele muito fina adquiriu o aspecto de “papel de seda amarrotado” (p. 128) e “as rugas se ramificam pelo rosto” (p. 28). Para disfarçá-las, a personagem usa “uma máscara de creme” (p. 28). Hábito que se transforma em uma maneira de Graciana esconder sentimentos que, apesar da luta que trava consigo própria, adensam o suor que escorre pelas fissuras da máscara e que, acumulados, represados, ameaçam 83 transformar seus olhos de cantos caídos em duas grandes e viscosas lágrimas, “na iminência de escorrer com o suor” (p. 36). Pela interpretação das Manchas de Rorschach ou Pranchas de Rorschach, o psiquiatra, Dr. Roland Kuhn analisa a origem da vontade de dissimular apresentada por alguns dos seus clientes. Baseado nas pesquisas do psiquiatra, Gaston Bachelard busca elucidar fenomenologicamente a “raiz da vontade de ser outro que se é”79. De acordo com o filósofo, lançar mão da máscara é uma maneira de sonhar. Com ela, o mascarado realiza dois sonhos: acredita-se ao abrigo da indiscrição do outro e, ao mesmo tempo, crê que os outros tomam a máscara pelo seu rosto. A partir destas conclusões, Bachelard define a máscara como “a síntese ingênua de dois contrários muito próximos, a dissimulação e a simulação”80. O estudo do pesquisador centra-se na análise da dissimulação. Neste ensaio, Gaston Bachelard classifica as máscaras em reais e virtuais. A máscara real é lógica, um objeto que o indivíduo coloca e retira conscientemente; a virtual é psicológica, fluida e aproxima-se do sonho. Através da dissimulação, a máscara virtual adquire valor existencial, é sentida, é uma atividade do ser, que a vai reformando à medida que a forma. Desse modo, a máscara adquire estabilidade e pode, “liquidar de uma vez o ser que se oculta”81, dando ao mascarado a chance de uma segunda vida, um futuro novo, pela fisionomia adquirida através da máscara. Segundo Bachelard, a dissimulação tem como característica a ambigüidade, produzida pela alternância entre a máscara e o rosto – o que pode ser traduzido como o ser da vida social e o ser solitário. No entanto, não conseguindo vigiar inteiramente a vontade do seu rosto, a dissimulação praticada pelo indivíduo é sempre parcial e deixa aflorar por alguns instantes, por detalhes, o ser mascarado: “uma cartilagem da orelha que fica vermelha, um nervo que estremece, um modo muito significativo de abrir as pálpebras, uma ruga que se cava intempestivamente, 79 BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar. Rio de Janeiro: Bertrand, 1994. p. 165. 80 Idem, p. 164. 81 Idem,p. 169. 84 uma [...] pressão no lábio, um [...] tremor na voz”82, testemunham a alma do ser que se disfarça. Esse comportamento pode ser observado com freqüência nas personagens Graciana e Patrícia: “Tia Graciana teve um bater aflito das pálpebras. Contraiu o labiozinho curto, escondendo os dentes” (p. 128). Ou neste fragmento em que a protagonista fala sobre a mãe: “Ela pareceu concentrar-se num pensamento doloroso mas distante. Os olhos se apertaram cheios de uma ácida sabedoria. Mas a expressão não durou mais do que um brevíssimo segundo e logo a fisionomia ficou serena de novo” (p. 108)*. As reações de Graciana ocorrem nos momentos de tensão ou de surpresa, instantes em que a vigilância sobre seu rosto se fragiliza e os sentimentos reprimidos afloram. O comportamento de Graciana sugere que a manutenção da máscara de mocinha e a recusa em alterar o ambiente que sempre a cercou são uma maneira de imobilizar a felicidade experimentada na juventude, garantindo, desse modo, a possibilidade de retomá-la novamente. A figura da tia parece concentrar-se, torna- se atarracada, como se houvesse freado o seu crescimento físico, lembrando a figura de um anão. O aspecto atarracado simula um invólucro: a concha que protege o ser frágil, ‘miudinho’ que ‘dorme’ em seu interior, cujos pés e mãos pequeninos permaneceram à mostra. Remete ainda à imagem de potencialidade. Diante do ser de possibilidade reforça-se a idéia de recomeço, de retomada do tempo que o tamanho dos objetos e enfeites do quarto, lembrando miniaturas ou brinquedos, como caixinhas, vidrinhos, bibelôs ou retalhos reafirmam, adequando seu tamanho ao de um ser que não cresceu. O comportamento ainda é o de uma mocinha romântica: excita-se com o pressuposto romance entre Patrícia e André: “Ela animara-se [...], tinha um ligeiro corado no pescoço e no queixo, os olhos [...] acesos. – Ele tem um jeito tão ardente, não, Raíza? Conheci um moço assim na minha primeira juventude” (p. 152). A personagem vive o suposto romance de Patrícia e André como se fosse uma experiência pessoal. Lembra com saudade do livro “As Meninas Exemplares” (p. 150), um clássico de Mme. De Ségur, de orientação moralista como era de praxe 82 Idem, p. 172. * Grifos meus. 85 nos livros da época. No romance, a ficcionista retrata um mundo de palácios e carruagens, cenários de contos de fada, enfim, uma paisagem de sonhos. Talvez por isso seja tão caro a Graciana. Bordando, costurando suas roupas, consertando as cortinas com “mimosos pontinhos cor-de-rosa” como se executasse um bordado, tia Graciana é a dona do fio e do tecido, cujos retalhos vai unindo, com a mesma paciência com que fecha os rasgões das cortinas, formando um novo pano: “O dedal dourado caiu-lhe do dedo. Recolocou-o e prosseguiu costurando como se receasse ferir o tecido com a agulha” (p. 30). Delicada como a princesa que feriu o dedo e adormeceu, Graciana aguarda a chegada do “cavalheiro do parque” (p. 28) para ser feliz para sempre. “Ela gostava de fazer-se de doente para poder permanecer fechada naquele mundo silencioso [...], indo e vindo em meio dos dourados já gastos da mobília” (p. 28). Graciana usa de qualquer subterfúgio para fechar-se na sua concha, cuja “semi-obscuridade rosada” sugere um local morno e aconchegante, A presença dos licores e do chocolate liga ao espaço da tia as sensações de prazer e nutrição, transformando-o em um centro nutriz e matricial, um casulo que a sustenta, mantendo-a em estado de latência. Aguarda, assim, o momento mágico em que poderá retomar a vida a partir da hora imobilizada no relógio de madrepérola. Abrigada em seu quarto, rodeada pelo passado, Graciana, no entanto, mantém-se de posse do fio. Este lhe possibilita encontrar a saída para a vida e estabelecer continuidade entre o passado/presente e o presente/devir: com o fio pode costurar a história da família, esclarecer “uns certos mistérios [existentes] na galeria dos mortos e dos vivos” (p. 184). Para isso necessita manter vivo o passado, nos “móveis suntuosos, objetos, quadros, retratos [vindos] na mudança” (p. 120) – remanescentes desaparelhados do mobiliário da casa em que viveu com seus pais – com leve cheiro de mofo, mas aptos a revelar os segredos do passado como; “O desbarate das nossas finanças [...] ninguém conseguiu entender, [...] de um dia para o outro [...] estávamos pobres” (p. 32); de Patrícia e do seu casamento: “Nem sabíamos de nada quando veio anunciar que marcara o casamento para o próximo mês” (p. 33); de Giancarlo: “Um estrangeiro [...] amedrontado [...] e sonhador [...] Ele não tinha mesmo jeito para nada. Perdeu a farmácia, foi lesado numa firma, tudo para ele corria tão mal! E tinha essa coisa de beber” (p. 33; 104); 86 o esforço de Patrícia para reverter as dificuldades enfrentadas pela família: “as privações que Pat passou para equilibrar as finanças, até fome pode-se dizer... Ajudei no que pude, principalmente depois da morte dele” (p. 105). Reunindo os retalhos da história familiar, a personagem desfaz as dobras do pano sobre o qual se assenta a história de Raíza, une passado/presente/futuro, inserindo a protagonista no tecido familiar, tenta unir os dois lados separados pelo rasgo da incompreensão e aproximar a mãe e a filha. Pois só unida ao presente e ao passado de sua história Raíza poderá tecer o futuro. “Os instrumentos e os produtos da tecedura [a agulha, a linha, a roca] são símbolos do devir [...], de ligador dos laços, são signos do destino, do rodar. O fio tecido é o modo de vencer o tempo, o destino e a morte. [...] Se opõe à descontinuidade, ao rasgo, à ruptura”83 e repara o hiato existente entre duas partes separadas. Unir mãe e filha é a função que Graciana exerce ao manejar o fio do tempo e a costura, desse modo une a tradição e o presente, o presente e o devir, representado por Raíza. Esta função parece corroborada pelo fato de Graciana morar no porão da casa, pois é dele que a casa – e o ser – obtêm “o piso firme e uniforme [para lutar] contra os medos”84 escondidos em suas paredes. É na terra do porão que a casa enraíza e cresce, para abrigar o ser contra as tempestades do mundo externo. Refletindo-se sobre a personagem nota-se nesta uma tendência à miniaturização, à concentração e ao recolhimento. A primeira característica é percebida nos detalhes físicos de Graciana como “mãos e pés muito pequenos” e na auto-imagem de “miudinha e frágil”. O aspecto concentrado é expresso pelos adjetivos “gorda e atarracada”. A caracterização da personagem como um todo lembra o movimento de enrodilhamento do ser até alcançar o repouso em um centro de bem-estar. Enrodilhado, fechado em uma cápsula ou concha o ser adormecido sobrepõe-se à passagem do tempo, às forças do destino e à morte. Sob a ótica do regime diurno de imagem, cuja lógica é a busca da própria superação através do devir, Graciana ao manter-se recolhida ao ‘porão’, longe da 83 DURAND. Op. cit. nota 2. p. 322. 84 BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios do Repouso: Ensaio Sobre as Imagens da Intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 84. 87 luz e presa ao passado representa o ser em queda, simula a perda de vida. Este processo é percebido na desintegração dos seus objetos, no pó que se acumula sobre os móveis e nas modificações que a figura da personagem sofre. Pelo regime noturno de imagem, a involução liga-se às matérias profundas e duradouras. Este movimento de descida evoca o regresso imaginário a um centro que, segundo Durand, liga-se à intimidade digestiva, ao ‘ingresso’ em um ventre nutritivo, prazeroso e de calor suave. Nesse regaço, as forças nutritivas e energéticas associam-se ao calor e atuam sobre o ser. No texto, essas forças estão representadas pela presença do chocolate, do licor e da água – o líquido turvo dos vidrinhos – pois, segundo Bachelard, fenomenologicamente, todo líquido é água. A ação das forças germinativas sobre o ser possibilitam seu renascimento cíclico. Fechada no porão – a profundidade da casa – Graciana adquire o caráter de ser involuido, ligando-se ao princípio feminino do eterno recomeço e evoca as forças germinativas ligadas à terra. Assim, tia Graciana tem o compromisso de ‘tirar’ do escuro, de trazer à luz (renascer) os segredos e as tradições familiares, dando-lhes vida e continuidade, através do recontar das suas histórias. 3.2.2.3 Entre deuses e demônios Adiante a cozinha, o templo de Dionísia, cujo nome lembra o de um deus grego. A fiel cozinheira há gerações acompanha a família de Raíza: serviu a avó da jovem, Dona Marta, depois a Patrícia, na casa da chácara e, finalmente, mudou-se para a cidade com as últimas descendentes da família: Patrícia, Graciana e Raíza. “Com sua face furiosamente negra” (p. 10) e “alto turbante branco” (p. 72), de figura “muito tesa e esguia [...] e a imponência de uma rainha negra” (p. 149), Dionísia é um ser de luz e sombra, um misto de deusa e demônio desses domínios, cujo centro de poder e energia é o fogão. Na infância, Raíza tomava café “perto do fogão de lenha” e sente, ainda hoje, “o calor do braseiro e o doce torpor [que a] envolvia” então, despertando a “vontade de [estender-se] no lajedo e dormir”, enquanto a chuva caía lá fora. Era na cozinha que Dionísia, “sentada num banco, ao lado do fogão, bordava morangos no meu avental” (p. 149), lembra Raíza, e contava histórias de demônios e assombrações, recordando, ela própria, a figura da “avó que morreu velhinha, 88 acendia o pito e ficava [como Dionísia] perto do fogão, contando casos” (p. 130), mantendo as crianças ao redor de si. Havendo servido a matriarca da família durante muitos anos, é com Dionísia, que fica o caderno de receitas de Dona Marta, a fonte de inspiração para a sua torta de abacaxi. Muitas mulheres transformaram seus livros de receitas em confidentes, anotando neles seus pensamentos íntimos que, assim disfarçados entre doces e salgados, passaram despercebidos do restante da família. Mulheres que Lygia Telles chama de ‘a mulher goiabada’ em A Disciplina do Amor. É a cozinheira, também, quem caracteriza a avó de Raíza: “lembro bem de Dona Marta que tinha esse mesmo jeito da sua tia, falava igual criança. Gostava de festas e de igreja, tinha na missa uma cadeira estofada só dela, ali ninguém mais ajoelhava” (p. 130). Com seu rememorar, Dionísia revela aspectos da vida das mulheres do meio social dos avós de Raíza: envolviam-se em trabalhos ligados à religiosidade, festas, quermesses e caridade. As atividades caritativas rendiam às mulheres assentos diferenciados e privilegiados na igreja de sua paróquia, e o reconhecimento ao seu trabalho de benemerência destacava a importância de sua família no meio social. Estas eram também uma das poucas ocupações permitidas às mulheres fora do âmbito doméstico. Do convívio com a família branca, Dionísia herdou o hábito de ir à missa no domingo e de acompanhar, levando Raíza pela mão, a procissão do “Domingo da Ressurreição”; da avó negra, recebeu os deuses primordiais e a tradição de contar casos. É a mucama quem transmite a Raíza orientação religiosa e, de quando em vez, repreensões, que são um misto de conselhos e lições de sabedoria popular como, na vida, “palavra não soma” (p. 164), exortando Raíza a construir para si algo mais que intenções e sonhos, a agir em vez de ficar a planejar sem jamais executar. Em sua sabedoria, feita mais de experiência do que de ciência, Dionísia conclui: tem “sonhos ruins” – pesadelos – quem “vive ruim” (p. 72), como Raíza. O pesadelo de Raíza com o pássaro negro que destrói o espelho guardado no sótão é, na opinião da cozinheira, o resultado de uma vida sem Deus, uma vez que, “a gente pode viver sem comer, mas quem vive sem Deus? Quem?” (p. 130). Para Raíza, o sonho tem um sentido de ameaça à menina feliz que morava no sótão. 89 Tomar café na cozinha e conversar com Dionísia são hábitos que Raíza adquiriu na chácara e que mantém também na cidade. Quando resolve mudar o rumo da sua vida, é na cozinha que Raíza busca, perto do fogo e de sua conselheira, os elementos da sua infância – a sopa que costumava tomar quando criança e os biscoitos – fazer uso dos alimentos da sua fase de menina dá a sua decisão um aspecto de recomeço. Estes gestos tornam-se representações da mudança de rumo que deseja imprimir no seu modo de viver. Dionísia representa para Raíza, a pajem, a avó, a mãe e a orientadora religiosa. Em sua cozinha, Dionísia tem sob seus cuidados corpo e espírito. Manipulando alimento e fogo, a cozinheira ampara o físico e o ânimo das moradoras da casa. Do vapor de seus cozidos emanam odores que se difundem pelo ar, agradando aos seres terrenos e, como incensos simbólicos, simulam os odores das libações que agradam aos seres divinos. O antigo fogão de lenha assemelha-se à lareira, cujo fogo, afirma Bachelard, é “símbolo do repouso [...] um fogo calmo, regular, domesticado, onde uma acha [...] arde com pequenas chamas. [...] um fogo que aquece e reconforta”85 e cuja suavidade lembra a tepidez do ninho. A sensação de conforto e de repouso que emanam do antigo braseiro são revividas por Raíza, sob as cobertas de sua cama, no apartamento do sétimo andar, durante uma noite chuvosa. A utilização do fogo na preparação dos alimentos simula um fenômeno alquímico: durante o processo de cocção, como no alquímico, é extraída a matéria- prima que vai ser transformada em princípio ativo e que, finalmente, animará o corpo. O cozimento retira o suco dos alimentos. Tal suco equivale a uma essência, a uma virtude, ligando-se, assim, a transformação alimentar e o ciclo digestivo à simbologia ascensional, a uma transubstanciação. O longo trajeto dos alimentos (o engolimento, a descida até o estômago, a ação química sobre o alimento, a transformação), até serem finalmente absorvidos pelo organismo, lembra a mudança de caminho, o desejo de renovação, de uma outra vida buscada pelo ser. A simbologia ascensional também tem representação no fogo. Este, pela verticalidade da chama, afirma Bachelard, representa o desejo de queimar alto, 85 BACHELARD, Gaston. A Psicanálise do Fogo. Lisboa: Litoral, 1989. p. 20. 90 sempre mais alto, para transformar-se em luz. O fogo, como todo elemento simbólico, tem dupla representação: quando calmo e controlado, aquece e aconchega, liga-se ao elemento feminino, à lua e aos ciclos de regeneração; quando arde, queima e destrói, é masculino e ligado ao sol. Pode ainda ser símbolo de pureza e impureza. Quando aparece ligado ao pecado e ao mal, ou ainda sob a marca da sexualidade, fala-se sempre numa luta contra o fogo como na figuração do fogo infernal, o fogo do diabo ou o fogo do amor. No simbolismo da pureza, liga-se a idéia do Juízo Final, ato de purificação que destruirá o Mal. Com sua ação provocará a separação entre os puros e os impuros, entre bons e maus. As imagens que se ligam à pureza tendem para o arquétipo da fundição e a forja dos minerais. Também se associa a esse tipo de valorização o fogo agrícola que purifica os terrenos, comunicando à terra uma virtude secreta e sucos mais abundantes. Nas cerimônias de purificação, o fogo atua como elemento destruidor das impurezas, cuja representação está no ato de Dionísia “polir as caçarolas até refletirem, como [um] espelho” (p. 11). Neste processo, o polimento e o brilho (luz) alcançados, representam a vitória sobre a sujeira negra ou da luz sobre as trevas tornando-se sinônimo de elevação. Sentada junto ao fogo do fogão, contando histórias ou bordando, servindo o café ou o chá, Dionísia é a representação do acolhimento, da família reunida ao redor da mesa ou em frente à lareira nos dias frios. É a mãe que abraça e a orientadora religiosa. É também a detentora da luz e do conhecimento. As várias nuances de cores do fogo parecem estender-se ao ambiente e aos objetos da cozinha: do negro furioso da face de Dionísia, passando pelo fulgor acobreado da caçarola, pelo vermelho – que lembra a paixão, o sangue, o ciclo do eterno retorno. Está nos morangos que a cozinheira borda no avental e que apontam para a maçã do pecado primordial ou da gula. Todas as cores parecem fundir-se no turbante branco, firmemente assentado no alto da cabeça de Dionísia, como a luz mais pura no final da chama, a coroa da dona desse reino. Nesse reino, próxima do fogo, Dionísia evoca a busca por uma essência, exalta as virtudes, é detentora de um conhecimento, adquire uma conotação divina. 91 Segundo Bachelard, os devaneios do fogo ligam-se às crenças, às paixões, ao ideal e a filosofia de uma vida. No seu ato de polir as caçarolas, a cozinheira faz surgir o brilho, a essência luminosa guardada na intimidade da matéria – a pureza sufocada pela sujeira. Esse desejo de separar o limpo do sujo, o bom do mau que a cozinheira evoca, está representado no texto pelo ato de Dionísia “[separar] os feijões em dois montículos [...] os bons e os carunchados” (p.86). A ação de separação realizada pela personagem liga-se ao arquétipo do semeador que separa o trigo do joio, a semente boa da má ou, ainda, ao do Juízo Final que preserva os bons e condena os maus. De modo semelhante, a cozinheira condena os feijões carunchados e cozinha os bons, retirando deles a essência nutritiva, ‘o suco’. Ao transmitir suas crenças e os princípios de religiosidade a Raíza, Dionísia incute-lhe a busca por um ideal, pelo aprimoramento e a construção de um futuro. Transmite-lhe também a esperança, a fé, a certeza de que um recomeço é sempre possível: “a gente ressuscita [em] qualquer tempo, menina” (p.188), afirma Dionísia. Esta afirmação equivale ao ato de polir as caçarolas, é o método que a conselheira utiliza para despertar em Raíza o desejo de encontrar o brilho interior, ofuscado pelo viver mal, sem Deus. Com seus ensinamentos, Dionísia cumpre a missão de alimentar corpo e espírito, despertando a luz de cada uma das moradoras da casa. Examinando-se a casa da infância de Raíza, percebe-se nela dois núcleos de afetividade que se complementam: um aéreo, próximo à luz, ao sol e ao ar e um outro, ligado à terra, profundamente enraizado nela. O núcleo aéreo evoca a leveza do sonho, a provisoriedade do ninho e o preparo para o vôo e para a liberdade. Este núcleo tem como elemento agregador a figura paterna. É o pai quem alimenta a fantasia e a magia da infância, que possibilita viajar pelos mundos escondidos nos almanaques e nos livros. No outro extremo da casa, o núcleo terrestre, centrado na figura da tia Graciana, a afetividade mansa, presa ao passado e à história, da vida quase adormecida, tamanha a lentidão do seu ritmo. Da calma que dela emana provém a estabilidade, a tranqüilidade. Entre ambos, a lareira de Dionísia, o ventre nutritivo, aquecido e confortável, de que Raíza necessita para desenvolver-se com segurança. Mas nem tudo é tão perfeito quanto poderia parecer: a discussão dos pais revela a Raíza a fragilidade do seu paraíso, já pressentida na debilidade do fiozinho d’água da fonte. 92 Com a morte do pai, Raíza inicia um novo ciclo, cria-se um novo núcleo, guiado pela objetividade e pela racionalidade da mãe. Ainda muito ligada ao aconchego e à despreocupação proporcionada pelo elemento paterno, Raíza tem dificuldade para adaptar-se a esta nova etapa da sua vida. Sente-se insegura e só, quer da mãe a mesma proximidade proporcionada pelo pai. Patrícia, fechada em seu mundo, no entanto, é um ser objetivo, prático, ligada à máquina, ao fabril, à produção e ao econômico. Dividida entre o passado e o presente, entre a despreocupação e a segurança da infância e o novo e movente período da adolescência, Raíza vive um período turbulento. 3.2.3 A casa na cidade O novo ciclo da vida de Raíza inicia com a transferência da família para a cidade. Raíza passa a morar em um apartamento localizado no sétimo andar (p. 69). A casa em que a personagem agora reside a mantém ainda mais isolada do mundo do que o sótão: da janela do apartamento, Raíza apenas observa o mundo. A janela é a abertura que lhe permite ver sem ser vista e sem participar diretamente do universo exterior. Distanciada, protegida, a personagem, postada por detrás da janela, lembra os peixes do aquário no seu giro sem saída e sem objetivo. Distanciando-se do mundo, Raíza olha apenas o lado de trás das construções que rodeiam o edifício em que reside, vê apenas uma seqüência de pátios: o quintal da casa da pensão com seus varais de roupas “formando um labirinto” (p. 69); o “quintal dos velhos” (p. 69) onde brinca um gato; o quintal com o viveiro de pássaros engaiolados, presos como ela. Conforme Bachelard, no espaço urbano a casa perde sua cosmicidade e sua simbologia torna-se sobretudo social, o natural foi quase apagado pelas modificações que o homem impôs à natureza. Com isto, a casa perde suas raízes e sua verticalidade cósmica, é apenas uma altura externa, sem significado fenomenológico. A casa transforma-se em uma superposição de caixas fechadas nas quais os indivíduos guardam seus pertences. As edificações existentes no espaço em que se move a personagem denunciam o universo social em que está inserida: a classe social, o estilo de vida, os hábitos. 93 Raíza mora agora em um grande edifício, construção marcada pela impessoalidade, pela divisão coletiva do espaço, pela perda da intimidade. Ao mesmo tempo, há um seccionamento espacial em áreas geometricamente delimitadas, fechadas e individualizadas que sugerem isolamento e solidão. É essa atmosfera que envolve a protagonista, penetrando-a de maneira sutil: isolamento e inércia, a sensação de sem saída que parece aumentar ao observar o espaço exterior dividido em quadriláteros fechados dos vários quintais avistados da sua janela. No espaço observado, cada habitante permanece dentro dos seus limites espaciais, sem que o morador de um quintal estabeleça contato com o residente do outro pátio. Não há comunicação, interação entre os vários ambientes percebidos através da janela. Os seres avistados – animais e pessoas – parecem “silenciosos e remotos, como [...] habitantes de um outro mundo”. À distância todos parecem adquirir a aparência dos pássaros engaiolados: um “ar aparvalhado de prisioneiros sem processo” (p. 69). Olhar para o mundo a partir de um lugar elevado supõe uma visão abrangente, privilegiada, mas perde-se com isso os detalhes, as particularidades. Essa é a experiência cômoda desejada por Raíza: prefere esse modo de ver o mundo, pois “assim do alto não se vê as nódoas das roupas e não se reconhece os bichos que estão sendo torturados. Nem repugnância nem piedade...” (p. 69), ou seja, sem uma tomada de posição, sem compromisso. Essa maneira de pensar parece sintetizar a sua maneira de viver: olhar, planejar sem, no entanto, partir para a execução dos planos elaborados. Fechada no seu “metro quadrado” (p. 69), mergulha em seus devaneios, fica a imaginar a vida/família que gostaria de ter, fugindo assim da realidade que considera insatisfatória e que não se sente capaz de alterar: sente-se só com a ausência do pai, não consegue integrar-se à comunidade de mulheres sob o comando da mãe. No sonho, Raíza recupera a casa da infância, vendida pela mãe para fazer frente às despesas familiares e conquista a integração que sempre desejou que houvesse na sua família, o que é percebido nos fragmentos: a casa continuava sendo nossa, a essência de jasmins tinha perfume de cravos e a torta de laranja tinha sabor de maçã. Nesse metro quadrado minha mãe pedia que eu deitasse a cabeça no seu colo para me afagar, como fazia quando eu era 94 criança. Meu pai [...] exibia para nós a face descoberta [...] todas as palavras seriam ditas; [...] tio Samuel recortaria com a tesourinha um Rei de Copas [o tio costumava recortar damas]. E nesse espaço também caberia André (p.69; 70). A descrição do lar idealizado pela protagonista está marcada por elementos aparentemente opostos: os jasmins têm odor de cravos – condimento usado no preparo de vários doces, mas que remete também à idéia de espinhos, pregos, sofrimento; a acidez da laranja é temperada pela doçura e pela sensualidade da maçã, ambivalência que está presente também quando Raíza fala de si mesma: quer os afagos dedicados à criança e, ao mesmo tempo, insere o namorado (elemento da vida de mulher) nesse espaço imaginado. Nele, o pai (re)surge como o chefe do grupo familiar, simbolizado na figura do Rei de Copas recortado pelo tio, e a mãe é fonte de calor e aconchego, papel anteriormente exercido pelo pai. Desse modo, o sonho se transforma em um misto de doçura e aspereza, de fantasia infantil e devaneio de mulher apaixonada, de alegria e sofrimento. A confusão de sentimentos que a envolve acaba por imobilizá-la, impedindo-a de agir, de dar uma direção a sua vida. Há nos objetos guardados na gaveta da cômoda de Raíza a mesma contradição observada nos seus devaneios, a sensação de potencialidades não desenvolvidas ou de possibilidades frustradas: Procurei na gaveta um comprimido [...], só encontrei envelopes vazios. [...] Revolvi a gaveta na esperança de encontrar um tubo que tia Graciana me emprestara, [...] pronto alívio de dores, nevralgias... Não o encontrei. Na antiga desordem, apenas os objetos de sempre: o isqueiro que não fazia fogo, a piteira chinesa, um caderno que comprei para começar um diário (p. 16). Raíza não ordena seus objetos, como não organiza a própria vida. Guarda envelopes vazios na gaveta, como guardava no bolso do avental as caixinhas vazias e os retalhos recebidos da tia Graciana, quando criança. Procura no analgésico milagroso a solução para as dores físicas, do mesmo modo que busca no lar ideal a resolução para seu estado de inadequação frente à vida. Há no isqueiro que não produz chama a mesma expectativa frustrada que vê em si própria. O isqueiro, segundo Durand, está imaginariamente ligado ao ritmo cíclico e ao controle do tempo. A repetição rítmica tem na sexualidade humana o modelo primitivo. Faz parte também da simbologia biológica e vegetal do eterno retorno, 95 simbolizados pela árvore que rebrota e pela madeira produtora da chama. Com a evolução técnica, o controle do tempo assume a conotação histórica, isto é, deixa de ser rítmico e torna-se progressão linear: o devir, a promessa de futuro – de chama, de desenvolvimento. A pedra do isqueiro simboliza a possibilidade de luz, a promessa de fogo, de realização. Raíza adolescente, como a pedra, condensa o devir, a possibilidade. Ambas, pedra e personagem, sob o efeito do “mal – a insegurança” (p. 19) experimentada pela protagonista, vêem suas possibilidades frustradas. O isqueiro que não funciona é uma maneira de imobilizar o tempo – como o relógio parado da tia Graciana –, de manter-se criança, de não assumir as responsabilidades inerentes à nova etapa da sua vida. Assim, permanece presa ao movimento cíclico do mundo-aquário em que vive. Um mundo calmo, aparentemente, sem sobressaltos. No entanto, ao observar o aquário de Dionísia , Raíza nota que “um peixinho vermelho [...] [é] seguido de perto por peixe maior e mais escuro” (p. 88), uma sensação sutil de perigo, parece rondar a paz do globo de vidro, podendo alcançá-la. Cindida entre o tem (faz) e o que quer, presa ao passado e insegura em relação ao futuro, Raíza sente-se como um ser percorrido por dois rios: um rio de sangue, soturno, que corre nas profundezas, e um outro, dourado, solar que lhe entra pela boca, os quais se encontram na sua intimidade. O encontro dos rios no interior da personagem remete ao embate entre o Bem e o Mal. Dessa luta nascem círculos de fogo que giram alucinadamente, ao som do “piano tocado pelo diabo” (p.19), os quais são devorados pelas “saias vermelhas” (p. 19). Essas imagens remetem à sensação de culpa que Raíza experimenta pela vida que está levando: amores inconseqüentes e cíclicos, o namoro com um homem casado, as festas sucessivas, o abuso de álcool e a experiência com outras drogas. A cor vermelha do rio liga-se à paixão, à sensualidade que, unida à figura da saia que roda, lembra um tempo cíclico, e o vermelho, o sangue do mênstruo. Esse sangue, considerado imundo pelo cristianismo judaico-cristão, está unido à idéia do pecado. Tais imagens são reforçadas pela presença do diabo pianista, o soberano dos mundos subterrâneos, onde arde o fogo do castigo eterno e que anima o baile/festa/sua vida. A cor dourada, ligada ao sol, ao ouro valioso, à luz e ao alto onde reside o 96 senhor do Bem, remete aos valores positivos e representa a tentativa de purificação e libertação de suas entranhas da imundície do sangue. Ao estudar as imagens subterrâneas, Bachelard aproxima o rio que anima as profundezas ao esgoto, “aos valores negros e sujos”86 e ao labirinto que angustia e aprisiona. Essas imagens, ligadas aos símbolos terrestres da descida e da queda, seja pela via digestiva ou pela sexual, inserem-se no contexto das proibições morais e sociais. Representam o conflito vivido pela personagem entre a educação de tradição judaico-cristã recebida e os novos valores vigentes, dentre eles o amor livre. “Uma alma repleta de faltas, mas que aspira ao bem!”87, esta talvez seja a tradução do estado de espírito da personagem. Embora Raíza viva ativamente sua sexualidade, há no seu íntimo uma luta inconsciente entre o que aprendeu e o novo momento social em que está inserida. O romance com um homem casado, visto como condenável pelos princípios em que foi educada, aumenta sua culpa que fica evidenciada no fragmento: “os da minha geração pareciam já ter-se libertado da influência do cristianismo com todos os seus medos de Deus, do Diabo, das assombrações, de coisas assim. Eu não” (p. 22).O modo como Raíza sente o seu relacionamento com Fernando, a sensação que este lhe transmite, parece ser a mesma que sente ao tocar a areia umedecida pelo mar; “embora sentisse uma obscura náusea por aquele fundo pastoso, ia descendo cada vez mais” (p 22), sensação que parece aumentar de intensidade até transformar-se em “um pião [...] vicioso, um pião que não quer parar porque pior ainda que o movimento [é] o repouso” (p. 23). Tal repouso lhe daria o tempo e a lucidez necessárias para a conscientização do seu desconforto em relação ao modo como está vivendo, realidade que a atemoriza. A maneira encontrada por Raíza para fugir dos conflitos que experimenta é o atordoamento e a alienação produzida pelo uso de álcool, éter e até mesmo o uso de outras drogas, durante as festas. Freqüentar festas é também uma maneira de proteger-se, de apagar as diferenças, de se integrar ao meio em que circula, pois só assim sua vida parece fazer sentido, no simulacro da comunhão. Festa lembra burburinho, movimento, o rodopio da dança, elementos ligados simbolicamente ao giro labiríntico, à agitação 86 Bachelard. Op. cit. nota 84. p. 190. 87 Idem, p. 192. 97 do verme, ao caos: “o fundo do poço” (p. 75) para Raíza. É lá, então, que o olhar crítico do espelho a encontra e a faz recobrar a lucidez, pela imagem nele projetada: Eram grotescas as imagens das mulheres nos espelhos, agora que elas se expunham sem disfarces, desabotoados os botões apertados, afrouxadas as cintas apertadas, relaxamento de caras e bexigas num intermezzo que cheirava a suor, perfume e urina. (p. 81) Desabotoados os botões das roupas e da censura, afrouxadas as cintas morais pelo uso da máscara que esconde e não permite a identificação, pelo álcool que desinibe, libera-se a irracionalidade, os instintos primitivos. A mistura de perfume aos excrementos lembra a presença do esgoto, a inferioridade. Essa visão age sobre a jovem como um choque que a faz tomar a decisão de sair do inferno em que se encontra. A ligação das idéias de festa/inferno é reforçada pela maneira como Raíza descreve a atmosfera da festa: “recebi em cheio o bafo ardente [...] do baile” (p. 83), o que lembra o calor que se associa à imagem infernal. A descrição que a personagem faz da festa e da organização dos freqüentadores reforça a idéia de pesadelo, de prisão, de vertigem, vivida pela protagonista. A comparação com animais que se alimentam de matéria em decomposição denuncia o sentimento de abjeção que sente por si mesma e pelo ambiente em que se encontra: Fui envolvida por um bloco de palhaços, [...] entrei numa ciranda de bêbados, [...] em meio dos quais distingui, em pânico, o dominó roxo. [...] Fugi agachada como uma barata passando por debaixo de uma porta. (p. 83) Para Raíza, atravessar o salão de baile, ganhar a rua e respirar o ar puro representa a luta por sua libertação, cujo prêmio é a paz. A saída da festa coincide com o amanhecer, início de um novo dia, começo de uma nova etapa para a personagem. O dia que nasce significa “alcançar o sol” (p. 85) e o começo de uma “nova ordem” (p. 86). O despertar para uma nova etapa de vida é marcado pela retomada de coisas da infância, reforçando a idéia de renascimento, de volta ao seio materno: Raíza pede à Dionísia “aquela sopa de macarrão com forma de letrinhas” (p. 87) – a mesma massinha com a qual escrevia o nome do pai quando criança – e “aqueles biscoitos” que costumava comer quando menina. Esse período é caracterizado pela personagem como um tempo de preparo para sair “do casulo” (p.114), a “metamorfose” (p.115), termos que sugerem mudanças, transformações, o tornar- 98 se outro: deixa para trás a adolescente inconseqüente para iniciar a sua construção como mulher. Como símbolo dessa outra vida que se propõe, busca um amor diferente das relações até então vividas. Nelas, o prazer físico e o momento presente era o que importava. Deseja agora algo mais profundo, mais duradouro, com um toque de espiritualidade. O horizonte restrito, a ausência de convivência com pessoas de fora do círculo de amigos que faziam parte da sua vida anterior, levam-na a ver em André, um ex- seminarista e professor de latim, amigo de sua mãe, o homem diferente que procura. No afeto que diz sentir pelo rapaz misturam-se os desejos de mudança e a vontade de suplantar a mãe na disputa pelo afeto do jovem. Contrapõe a sua juventude e ansiedade à maturidade e equilíbrio da mãe. Assim, no afeto que nutre pela mãe misturam-se raiva, desejo de proximidade e rejeição, carinho e agressividade, insegurança e ousadia. Presa desses conflituosos sentimentos, Raíza não é capaz de perceber o ser problemático que é André, e encara as advertências maternas como uma tentativa de impedir o seu romance com ele. Faz do sentimento que nutre por André mais um pretexto para agredir a mãe. Ressalta na descrição que a narradora faz das casas em que viveu a presença de divisões imaginárias no interior da habitação: a casa da chácara dividia-se em dois mundos um mais alegre e um outro menos alegre. No apartamento, ao observar, através da sua janela, os vários quintais situados ao redor do prédio em que mora, Raíza percebe o isolamento em que vivem seus moradores. A personagem identifica, no espaço externo, uma situação semelhante àquela vivida no interior da sua residência: externamente os muros erguidos ao redor das propriedades delimitam o espaço e, ao mesmo tempo, ‘aprisionam’ os indivíduos em suas áreas de posse. No interior da casa, paredes invisíveis erguem-se ao redor das moradoras, isolando-as em seus aquários, impedindo que se aproximem verdadeiramente umas das outras. Para vencer a solidão decorrente desse fato, cada uma delas encontra um modo particular de evasão: Dionísia lida com suas massas; Graciana faz do seu quarto uma concha mágica que imobiliza a passagem do tempo, mantendo presente o tempo feliz da juventude; Patrícia cria mundos fictícios e “heróis distintos, distintíssimos [...] que se debatem [numa] luta sem descabelamentos” (p. 105), atitudes muito semelhantes a sua própria maneira de 99 enfrentar as dificuldades; Raíza dilui-se no tumulto das festas, tentando esconder o vazio da sua vida. Nota-se, então, que a fragmentação do espaço, o isolamento e a solidão são as características mais marcantes da casa em que Raíza vive/viveu a adolescência. 3.2.3.1 O espaço materno O fogo é uma ocasião, [...] o pretexto do qual se aproveita o lampião apagado para irradiar a sua luz. (Bachelard). Disputar o afeto de André com a mãe torna Raíza mais consciente da presença materna. Assim, passa a observá-la mais atentamente. Da infância vem a imagem de uma “mãe sempre silenciosa, sempre vestida de branco, uns vestidos tão leves que [...] faziam pensar na [...] sereiazinha que se transformara em espuma” (p. 10). A mãe que lembra é um ser diáfano, etéreo, inconsistente, como uma imagem de sonho. O branco e a leveza da roupa lembram um ser ligado à luz, à pureza e à fantasia, lembram um ser mágico que pode desaparecer a qualquer momento. Reforça esta impressão o fato de a mãe permanecer fechada na sua sala para trabalhar. A presença materna é marcada pelo ruído da máquina de escrever. “Uma esfinge” (p. 10), mas “a única que [...] inspira confiança” (p. 10), dizia a professora de piano. Ser misterioso, uma ameaça ao pai são as características maternas que completam o quadro de insegurança que circundou a infância de Raíza, após haver ouvido a discussão dos pais. Apesar disso, recorda que era na saleta em que a mãe escrevia que gostaria de ficar. Mesmo agora, já crescida, percebe que o desejo de aproximar-se e a sensação de temor em relação à figura materna ainda estão presentes. Diferente, é o adjetivo que tia Graciana utiliza para caracterizar Patrícia: “passou a adolescência toda fechada no colégio, [...] casou-se cedo, foi morar longe [...]. Não se entusiasmava nunca, preferia ler, estudar, [...] reservada demais” (p. 30; 31). Conforme a tia, quando os negócios da família faliram, Patrícia era a única “que parecia raciocinar, só ela não perdeu a cabeça, sempre tão segura” (p. 32). Em certas ocasiões, teve “um comportamento esquisito” (p. 33), diz tia Graciana: rompeu com a tradição familiar ao escolher ela própria o homem com quem se casaria – um homem sem tradição e sem fortuna. Além disso, foi a primeira mulher 100 a trabalhar e sustentar financeiramente a família, a primeira a ousar “mudar o sistema” (p. 33) que tinha, até esse momento, o homem como o mantenedor do grupo familiar, cabendo também ao pai a decisão sobre o momento mais adequado para o casamento de suas filhas. Distante, etérea, ameaçadora, misteriosa, diferente, são os adjetivos utilizados pelas várias pessoas para definir Patrícia. É difícil para Raíza descobrir a verdadeira Patrícia entre as diversas retratadas, diante da máscara de impassibilidade que esta se impôs. Os fatos contados pela tia, bem como suas próprias observações, permitem a Raíza ir formando uma nova imagem da mãe: de ser diáfano e distante assume pouco-a-pouco feições de realidade, como um misto de equilíbrio, de objetiva racionalidade e ousadia capaz de romper normas que considera obsoletas. Como ser humano, percebe-a muito só, sem amigas, “muito reservada” (p. 103). Alguém que esconde as mãos, talvez, para que não se percebam os sinais deixados pelo tempo ou seja uma maneira de esconder a insegurança que sente ao defrontar-se com a filha. Além das mãos, o envelhecimento está estampado também nos cabelos “castanho-grisalhos” (p. 62) que poderia tingir, no entanto, prefere deixá-los assim, coloridos pelo tempo. Cabelos que mantém presos, deixando à mostra o “rosto liso, limpo” (p. 106), sereno, de mansa beleza interior, de olhos “largos e luminosos irradiando uma luz que a [envolve] como uma aura (p. 62), [...] cheios de [...] ácida sabedoria” (p. 108). A boca jovial, de cantos virados para cima (p. 175) e de colorido discreto, se abre em um sorriso misterioso – “de Gioconda” (p. 74) – que se irradia para o olhar. Boca em cuja comissura se forma “uma pequenina prega de cansaço” (p. 109). O retrato da mãe, traçado por Raíza, completa-se com o seu modo de vestir: veste-se como “uma princesa, toda arrumada” (p. 63), [usando] meias, apesar do forte calor, abotoaduras fecham os punhos de sua blusa. O vestuário, os adereços, o modo de arranjar o cabelo não são elementos apenas de ordem funcional, estes são meios de comunicar, sem palavras, a impressão que Patrícia quer que os outros tenham a respeito dela: um ser equilibrado, de boa posição social, capaz de enfrentar o mundo ‘de rosto lavado’, ou seja, sem medo, frente-a-frente. Embora pareça ainda jovem, “não era mais jovem” (p. 62) O aspecto discreto e prático, transparece também no escritório e no quarto de Patrícia. 101 Os móveis do escritório: uma estante de livros (p.108), uma cadeira, uma mesa sobre a qual ficam um vaso com “um solitário botão de rosa espetado” (p. 106), a máquina de escrever e os originais dos seus romances, são essencialmente funcionais, para suprir as suas necessidades laborais. A máquina de escrever, instrumento de trabalho da mãe, é também a maneira que Raíza utiliza para saber se Patrícia está ou não em casa: o ruído ou o silêncio da máquina confirma a presença/ausência da mãe. O escritório tem como único adorno referido flores de “cabos perfeitos”: “o cravo vermelho pendia sobre a borda do copo. [...] Devia ter o cabo quebrado, caso contrário Dionísia não o teria colocado ali. [...] os perfeitos iam para o escritório da minha mãe.” (p. 21). O gesto de Dionísia, a seleção que faz das flores a serem colocadas no escritório da patroa, é uma maneira de exprimir, de representar, sem palavras, a imagem que tem de Patrícia e a sua dedicação. Simbolicamente, a flor representa a vida e a pureza. A haste perfeita, a verdadeira sustentação, a firmeza representada por Patrícia, o apoio que esta proporciona à família. Sobre a mesa, aparece também a bandeja do chá. “Há bandejas de chá em todos os cantos desta casa” (p. 106), afirmara Raíza em outra ocasião. O ritual do chá é um hábito que denuncia a ligação à cultura de elite, européia e remete à antiga condição social e financeira da família. O chá é mais uma maneira de Patrícia expressar o comedimento com que se comporta frente às dificuldades. A descrição do quarto materno confirma a sobriedade percebida nos trajes e no escritório: um quarto “sóbrio e cálido” (p. 157), no qual aparecem: a mesa de toalete e o espelho – objeto que parece ser uma das poucas concessões à vaidade que a personagem se permite –, no qual Raíza observa a imagem de Patrícia, a mesa de cabeceira sobre a qual repousam um “pequeno abajur de opalina rosada, a espátula e o cinzeiro” (p. 157), o qual denuncia seu hábito de fumar. A sensação é de um lugar “calmo e repousante” (p. 157), de equilíbrio. Nota ainda que não há “nenhum retrato (p. 157). Nenhuma imagem [...] de santos” (p. 158) ou qualquer outra. Questionada, a mãe toca o peito e responde: “as imagens dos meus santos estão aqui dentro. E os retratos estão nos álbuns” (p. 158). Patrícia esmera-se para manter as coisas guardadas nos seus lugares devidos, bem fechadas em seus mundos para não perturbarem o equilíbrio do 102 mundo exterior. Aparentemente, trata seus afetos com a mesma objetiva racionalidade com que encara as situações difíceis que precisa enfrentar. Encerra os objetos em seus espaços, como fecha na alma os afetos e as aflições. Esses sentimentos transparecem apenas em pequenos e quase imperceptíveis sinais e gestos, como os olhos que se apertam, a boca que se crispa, as mãos que se escondem, o rosto e a pele que envelhecem subitamente. Tais gestos denunciam o esforço realizado pela personagem para manter o autocontrole, adquirido nos muitos anos de educação no colégio interno e na prática do “método iogue e dos processos lentos” (p. 157). Este método tem por finalidade libertar o espírito pelo domínio do corpo. Para isso, o Iogasutra (livro da ioga) estabelece exercícios para a alma e a mente, visando amortecer o choque do mundo exterior sobre o espírito e auxilia a encontrar o equilíbrio emocional e sobriedade no trabalho e na introspecção. Guardar seus santos/lembranças dentro de si mesma é um modo de tornar-se o seu próprio esconderijo, na dialética do guardador e do guardado: escondendo suas imagens guarda-se junto com elas, disfarça-se, esconde-se no fundo de si própria. Cria para si própria a máscara de impassibilidade com que se preserva e mantém intactos sentimentos e lembranças. Adentrando no espaço materno, Raíza descobre também a beleza física e a sensualidade materna. Observa o “corpo amadurecido sem pressa, com a calma de um fruto”, as pernas que “poderiam parecer mais firmes se não fossem tão brancas”. “A beleza lavada e branca”, cuja sensualidade é percebida na “picante [...] combinação de seda branca [com] rendas” (119; 155; 154; 153). Esta descoberta confunde e inquieta Raíza pois, se por um lado representa a inclusão da mãe no universo dos seres terrenos e humanos, dotados de carne e espírito, por outro lado evidencia a possibilidade de a mãe disputar com ela o amor de André. A dificuldade em lidar com a sexualidade entrevista na mãe desperta a agressividade de Raíza que procura ridicularizá-la, desestabilizá-la: “ninguém mais usa combinação, só no cinema é que as mulheres ainda aparecem assim, combinação de renda preta. Mas por motivos eróticos, claro.” (158). Raíza põe em evidência a idade da mãe, atribuindo-lhe o aspecto de fora de moda, de ultrapassada. Desmerecer a mulher pressentida na figura materna é o modo encontrado pela jovem para diminuir a rival em potencial. Esta atitude demonstra 103 também o seu despreparo para aceitar a mãe como um ser humano igual a si própria, com os mesmos desejos e necessidades experimentados por ela, embora reclame da posição de “divindade postada [...] no alto” (p. 157), de um ser recolhido “ao seu mundo, [...] isolada [em] seu plano ideal” (p. 44) que, segundo a jovem, a mãe ostenta. Com sua agressão, Raíza ergue uma barreira entre ambas. Tal barreira é construída para esconder sua insegurança e com a qual magoa a mãe, dor que Patrícia exterioriza apenas na turvação do olhar e nas rugas que lhe vincam a face. Esta característica que Patrícia tem de enfrentar, com aparente serenidade, as situações difíceis, a capacidade de guardar no fundo de suas gavetas dores e tristezas, de manter-se equilibrada, controlada frente às vicissitudes, protegendo e mantendo os seres que dela dependem, reflete-se no ambiente prático, desprovido de enfeites, sem exageros. Patrícia, com seus modos controlados, seu “sorriso de Gioconda” (p. 74), faz de si própria o cofre no qual guarda seus tesouros, leva no rosto limpo a mesma impressão de ausência de retratos do seu quarto, traduzida em uma aparência de impessoalidade, no ar de serena indiferença que é desmentido pelas rugas que a tensão imprime a sua face e pelo hábito de esconder as mãos. Sob a crosta da altivez, sob a rija carne madura, fortalecida nas experiências vividas, esconde-se a mesma maciez da seda e a delicadeza da renda da “lingerie” que a veste e enfeita. As qualidades da mãe Raíza só descobrirá ao final do verão, quando livre do seu desejo de competir a olha sob uma outra perspectiva. Um gesto torna-se o fator de revelação da nova imagem materna: “minha mãe apareceu na porta arregaçando as mangas da blusa” (p. 202).Observando o gesto da mãe, Raíza descobre ter sido sempre esta a atitude de Patrícia frente à vida e às dificuldades com que se deparara: arregaçar as mangas e lutar, sem queixas, sem se permitir um gesto de fraqueza, até a superação do obstáculo a sua frente. A descoberta sobre o modo de ser da mãe é corroborada pelos “gestos precisos” com que esta dispõe as roupas de Raíza para o banho, “sem fazer qualquer consulta, [escolhe] a calça comprida, a blusa, as sandálias... [...] gestos simples de rotina” (p. 203), mas reveladores da mãe que Raíza sempre desejou ter, que sempre estivera próxima, 104 embora ela não a percebesse. Esta é a mãe cuja existência o pai tentara ajudá-la a encontrar através da rosa que substituíra seu rosto. O abraço trocado com Patrícia, o banho de banheira preparado por ela, são uma maneira de Raíza recuperar a infância. O mergulho na banheira lembra o retorno simbólico ao útero materno, o renascimento: “provei a água: era rude mas quente o gosto do sal. [...] mergulhei depressa na água,. [...] aninhei-me no fundo da banheira azulada, ouvindo as vozes de Dionísia e de tia Graciana” (p. 203), testemunhas do seu recomeço. O verbo utilizado pela personagem para caracterizar o seu acomodar-se no banho aponta para um reinício, um retornar ao ninho, o útero aéreo e azul. Seu gesto lembra ainda o rito do batismo cujo mergulho na água simboliza a morte e o enterramento de um modo de vida visto como contrário às leis divinas e o (re)surgimento para um modo diferente de viver. A nova vida é sugerida no texto pela presença do “homem que tinha cheiro de árvore” que bate à porta de Raíza no final do verão. A característica que Patrícia tem de enfrentar, com aparente serenidade, as situações difíceis, de manter-se equilibrada, controlada , protegendo e mantendo os seres que dela dependem, reflete-se no ambiente prático, desprovido de enfeites, sem exageros, construído por ela. Embora despojado, acha-se nele a calidez rosada do abajur, cujo brilho, de uma luminosidade sem excessos, dissipa a escuridão, os medos, tornando o espaço materno aconchegante e acolhedor. O abajur remete à imagem do lampião que, segundo Bachelard, representa uma intimidade, uma espera: coloca-se como símbolo de uma luz que vela, que afasta os medos noturnos. Por trás dessa luz, há um ser solitário que vigia pacientemente, “que vela sobre o seu quarto, sobre todos os quartos. Ele é o centro de uma residência.”88. O abajur pode ser tomado como a representação de Patrícia a velar por sua família e a esperar que um dia a filha descubra sua luminosidade. Representa concomitantemente a luz que ilumina a mesa de quem trabalha, a obstinação do trabalhador que lê e medita só, sob a lâmpada. A tonalidade rosada que o caracteriza lembra o dia que renasce da morte noturna e acalenta a vida, alimenta a 88 BACHELARD, Gaston. A Chama de Uma Vela. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989. p. 23. 105 esperança. Brilho e calor na justa medida, sem transbordamentos. Suficiente para iluminar e aquecer quem dele necessita e dele se aproxima, transcendendo na capacidade criativa da romancista, cujos heróis têm a mesma postura fidalga diante da dor. Além disso, a calidez do espaço materno deixa entrever a afetividade sob a crosta da indiferença. 3. 2. 4 André e o casarão André, o amigo de Patrícia, é descrito por Raíza como um ser sob tensão. Esta transparece nas “mãos ossudas e pálidas”, entrelaçadas com tanta força que “as pontas dos dedos ficavam exangues”; nas “unhas roídas até a carne, nos lábios secos”, na maneira afobada de falar (p. 23; 21; 89; 155). Fisicamente a protagonista o descreve como um homem de “cabelos espetados e negros, magro” (p.91), vestindo um terno “cinza chumbo, quase preto” (p.91), de corte “provinciano” (p.91) que denuncia sua condição financeira e social. O seminarista assim se define: “sou alguém fora de moda, medieval. Sou assim” (p. 93). O rapaz é um ser indeciso, amedrontado, dividido entre as coisas divinas e terrenas. André se diz sacerdote, mas carece da certeza de sua vocação, e espera de Deus uma resposta que só pode achar em si próprio. Na amizade de Patrícia, encontrou a força para continuar sua busca por respostas, “a corda” que o mantém à tona das águas de suas tormentas. Decidido a cumprir seus votos sacerdotais, apesar de sua incerteza vocacional, André foge do amor que Raíza lhe declara. Encara o afeto da moça como mais uma prova de resistência ao mal, uma forma de reafirmar sua pureza. A resistência do rapaz transforma os encontros dos dois em uma espécie de duelo, em que um dos oponentes se coloca em posição de defesa e o outro parte para o ataque. O comportamento esquivo, a atitude defensiva do seminarista que parece acentuar-se a cada encontro, o diferencia dos rapazes do meio social de Raíza, cujo comportamento gira em torno do sexual. A insistência de André em manter-se fiel às suas convicções, o aspecto místico que o reveste parecem ser uma resposta à busca de Raíza por um amor diferente das aventuras sensuais vividas até o momento. Decidida a conquistá-lo, antes que haja um envolvimento maior entre o 106 rapaz e a mãe, desconsidera as advertências maternas, encarando-as como resultado do ciúme: “André é pobre por dentro [...], não tem quase nada para enfeitar suas paredes [...], não teve namorada, nem amigos, nada” (p.159), afirma Patrícia. Raíza nega-se a ver as evidências apontadas pela mãe e a respeitar as convicções de André. Imbuída do desejo de conquista, Raíza abandona sua atitude contemplativa e sai para a rua. Dizendo a si mesma que deseja pedir o perdão de André, Raíza resolve procurá-lo na casa de Dona Petronilha, onde ele reside, logo após haver visitado Marfa no pensionato “para moças sem lar e poucos recursos” (p. 138), administrado por freiras cinzentas. A cor cinza dos hábitos parece estender-se ao restante do bairro: pode ser vista desde o “cachorro encardido que dorme esparramado ao sol” (p. 140), até a escadaria encardida da igreja onde “um mendigo [dorme] ao sol” (p. 142), padecendo animais e homens do mesmo abandono . A presença de animais na rua, de mendigos e o aspecto pouco limpo dos elementos do bairro denunciam a pobreza desta região da cidade. O aspecto escurecido, sujo da escadaria da igreja contrasta com a luminosidade da “aura ardente” (p.140) do interior. Este contraste lembra um jogo de luz e sombras, de frio e calor, de limpo e sujo que é percebido também no ambiente de André. O aspecto cinzento e a pobreza observados no bairro em que Marfa reside, assumem um caráter preparatório para o que Raíza vai encontrar no lugar onde André mora. Andando pelas proximidades da casa do seminarista, Raíza percorre “uma ruela de casas modestas, iguais [em que] alguns meninos empinavam um papagaio roxo, [...] e duas mulheres proseavam [...] esparramadas nas suas cadeiras [...] no meio da calçada” (p. 178). A vida no bairro modesto caracteriza-se pela ocupação coletiva do espaço, pela interação entre os moradores. A redução do espaço individualizado desloca os moradores para a rua, para a frente das casas. A calçada parece tornar-se a extensão da sala de visitas e substituta da praça de brinquedos para as crianças. Aqui, espaço privado e público se confundem, se misturam, dando ao bairro um aspecto vivo, movimentado. Pelas ruas que percorre, Raíza se depara com o universo de pessoas que o compõem: o homem que bebe encostado no balcão do bar (p 168), o vendedor mal-humorado, o pregador de terno surrado a vaticinar castigos eternos a uma platéia desatenta, as prostitutas, o 107 amolador de facas. Gente simples, modesta, de vida comum e anônima, entre as quais André é apenas mais um, facilitando a ele, isolar-se em meio da multidão. “Um casarão decadente mas limpo” (p.142) é como Raíza descreve a moradia de André. Ultrapassando a porta do edifício, a jovem se depara com um ambiente muito pobre, de uma pobreza que a surpreende: “eu sabia que ele era pobre mas não podia supor que fosse pobre assim”. Passar pela porta do casarão assemelha-se à travessia de um portal, o umbral a separar dois mundos: o externo e o interno. O mundo externo, a rua ampla, movimentada, dourada pela luz solar; o mundo interno, limitado, silencioso, cujo único movimento é o do assustado “gato malhado que descia colado ao corrimão” (p.142), caracterizado pelo “cheiro de creolina” (p.142) que o impregna e a restrição gradativa do espaço e da luz. A trajetória de Raíza, da rua até o quarto de André, está marcada pelo jogo entre luz/sombra, vasto/restrito, exterior/interior, decadência/limpeza e pelos diferentes odores que percebe ao longo do caminho percorrido. Essas alternâncias reforçam a idéia de passagem de um espaço para outro: de um mundo conhecido para um novo, desconhecido. Nesse trajeto, outros elementos reiteram a idéia de travessia como: a escada, o corredor, a porta do quarto. A escada do casarão, une o térreo ao primeiro andar, a luminosidade da rua à obscuridade do interior. “A velha escada da casa de cômodos” caracteriza-se pelo “cheiro de creolina” (p. 142) que dela emana. Esse odor remete ao cheiro de bolor dos ambientes fechados e pouco iluminados. Lembra ainda antigos anti-sépticos, reiterando o aspecto de limpeza utilizado na caracterização do casarão. A aparência limpa é mencionada novamente por Raíza quando observa as tábuas largas e rangentes do assoalho, do quarto de André: repara que este “devia ter sido lavado nessa manhã porque as frinchas ainda estavam úmidas” (p.145). A limpeza do interior da casa parece se contrapor ao aspecto envelhecido e descuidado do seu exterior. Nessa aparência intui-se algo sinistro, ameaçador, fantasmas, talvez, que têm a presença sugerida pelo ranger do assoalho antigo. Após a escada, “o estreito corredor” (p.142) com suas várias portas remete à imagem do túnel, a ligação de um e outro locais. O túnel, como o corredor, é uma via de comunicação: conduz através da escuridão ou de uma zona de luz a outra. É 108 símbolo de todas as travessias obscuras, inquietantes, dolorosas que podem desembocar em outra vida. A mesma inquietação que toma conta de Raíza enquanto caminha pelo corredor. Ao longo dele, algumas portas; presos nelas, cartões identificam os moradores dos quartos e parecem ressaltar ainda mais a pobreza do interior da casa: “na primeira porta havia um cartão amarelado: Madame Giselda – Parteira Diplomada”, na segunda porta, “apenas duas iniciais: R. M., escritas com tinta vermelha, em um papel colado na porta” e na terceira, “não havia nenhuma indicação” (p.142). As identificações referidas, além de indicarem a condição social e financeira dos hóspedes da casa de cômodos, sugerem uma intenção crescente, principalmente, por parte dos moradores dos dois últimos quartos, em não serem identificados, um desejo (in)consciente de passarem despercebidos, de isolar-se. Tal impressão é reforçada pela análise do percurso de Raíza da rua até a porta do quarto de André. Nesse trajeto percebe-se um afunilamento gradativo do espaço e a intensificação da obscuridade dominante no ambiente: o espaço amplo e claro da rua vai se tornando mais e mais estreito até focar-se no círculo negro da maçaneta, cujo giro permite a passagem para o desconhecido, representado pelo quarto do rapaz. Chama a atenção também a profissão da moradora instalada no princípio “do estreito corredor” – parteira –, figura que contém em si as possibilidades de vida e morte, como a sugerir a possibilidade do encontro com a alegria e/ou com a tristeza ao longo do caminho a ser percorrido. Pelas mãos da parteira, passam os nascidos vivos e também os que não chegam à vida. Através dela, chegam a felicidade e a dor. A porta fechada remete à fronteira entre a vida e a morte, extremos contidos na figura da profissional. Na porta de André, apenas o círculo da “maçaneta preta” (p.142) o olho negro da porta, recepciona Raíza. O preto da maçaneta lembra a escuridão, a cegueira, o olho impossibilitado de revelar os segredos que guarda. Conforme Afrânio Coutinho, “na mitografia o escuro é emblema da queda, das formas demoníacas. Simboliza também as forças do inconsciente, do instinto, os poderes 109 supralógicos”89 através dos quais o homem pode alcançar o centro do universo. A cor da maçaneta acentua a idéia de mistério, de um mundo desconhecido que se esconde por de trás da porta, intensificando a tensão que a visita provoca em Raíza. Sob a mão da jovem, a maçaneta “girou como um olho” (p.146), permitindo a passagem para o quarto de André. A primeira informação que Raíza recebe desse universo é o “cheiro de sala de aula” (p.143) e que ela identifica como sendo “o cheiro de André” (p.142). O cheiro lembra a secura, a aspereza do pó de giz que impregna as roupas, as mãos, a pele, que entra pelo nariz, resseca os lábios, a boca, a mucosa, a alma. O mesmo aspecto seco e árido presente nos objetos que povoam esse ambiente estende-se ao dono do quarto, cuja figura magra parece ter mais ossos que carne. Aos poucos, Raíza faz um levantamento do mobiliário do quarto: “a cruz de madeira pregada na cabeceira da cama” – símbolo de sua devoção, de sua profissão, do sacrifício do Filho e, talvez, do próprio André. Percebe, ainda, “um armário grande e fora de moda, a estante tosca de prateleiras abauladas sob o peso excessivo dos livros” (143) – curvada como os ombros do dono (p.178), sobre os quais pesa a carga das próprias dúvidas – , “a mesa severa, única peça de bom gosto” (p.143) entre os móveis ali reunidos. O mobiliário pobre, despojado dá ao ambiente o aspecto de uma cela monástica ou de uma prisão. Próximo da mesa a “única cadeira (p.143), [de] espaldar duro” (p.171), índice da sua solidão e da sua falta de hábito em receber visitas. A nudez das paredes, os móveis simples, antigos e grandes demais para o quarto são elementos que dão a este espaço um aspecto de disparidade, desconforto e frieza. Assim como os móveis são toscos, grandes demais, destoam do ambiente, as roupas de André denunciam sua simplicidade pelo corte provinciano. São tão grandes para ele quanto o armário é para o quarto. Mobiliário e vestes parecem ressaltar o sentimento de inadequação que André experimenta em relação à vida. A mesa, única peça de bom gosto dentre os móveis, destaca-se naquele espaço, difere das demais peças como que refletindo a imagem de uma outra pessoa. A explicação dada pelo próprio André: “- Bonita essa mesa, André./ - 89 COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio; EDUFF,. v. 5, 1986. p.489. 110 Foi de meu pai. É a única coisa que me restou dele” (p.145), confirma esta suspeita. A fraca iluminação fornecida pela “lâmpada solitária [presa ao teto por um] fio encardido” (p.171) não consegue romper a impressão de desconforto, é incapaz de dar ao ambiente uma atmosfera aconchegante e confortável. Da janela do quarto, avista-se um “terreno baldio”, espaço ermo, abandonado, por onde vaga um “cachorro vadio” (p.175). O cão solitário e sem dono sugere um destino tão indefinido quanto o morador da casa de cômodos, vagando na incerteza da sua vocação. Quarto e paisagem parecem um contínuo da desolação interior de André, do sentimento de abandono que por vezes o domina e que o levou a tentar o suicídio antes de conhecer Patrícia. Só um objeto empresta um toque colorido, vivo a este ambiente: “um porta-papel de couro verde, com uma gravura [...] onde dois navios ancorados pareciam meio diluídos no nevoeiro da noite”(p.173), neblina que torna o porto um lugar indefinido, como é o futuro para André. O quarto do seminarista, como a cela do convento, é um espaço propício à mortificação do corpo, destinado ao culto do espírito, da meditação e da oração, sensação reforçada pela presença da cruz e dos livros “meticulosamente marcados por lingüetas de papel”(p.143), únicos objetos que parecem receber os cuidados do jovem. Ao lado deles, sobre a mesa, estão “o caderno preto de capa puída, uma pasta de cartolina [com] o maçarote de folhas com anotações feitas às pressas, o lápis [marcado pelos] seus dentes”(p.143), objetos desgastados pelo uso e cuja desordem reflete o desassossego de André. A inquietação vivida pelo rapaz destrói sua carne do mesmo modo que o tempo desgasta seus objetos. Esse desgaste dá ao jovem um aspecto magro, duro e a impressão de inadequação, referida pela narradora, entre o tamanho do paletó e o porte físico de André: “um paletó tão gasto e tão largo que imaginei ser de algum terno da adolescência, quando era então mais gordo e mais certo sobre si mesmo.” (p.143). Parecem agir sobre o físico de André tantas intempéries quanto as que vêm atuando sobre o exterior da casa de cômodos, dando a ambos, homem e edifício, o mesmo aspecto de decadência. Há também em ambos o mesmo sentido de resistência: o casarão resiste heroicamente às forças da natureza, André aos 111 tormentos interiores gerados por suas dúvidas: ser sacerdote é um chamado Divino ou apenas uma resolução como outra qualquer. Manifesta-se também em ambos o desejo de preservação da interioridade, traduzido no aspecto de limpeza que caracteriza o casarão e, em André através do desejo de manter-se casto, no apego às idéias conservadoras, na não anuência às práticas liberalizantes sugeridas por Raíza: ele poderia tornar-se um desses sacerdotes adaptados “que fumam, bebem, têm amigas, [...] e até fazem amor” (p.93). A precariedade do equilíbrio interior de André, a tensão emocional a que o rapaz está submetido, reflete-se ainda na atitude defensiva que assume frente à visita de Raíza: “Abotoou o colarinho [...], vestiu [o] paletó./ - Mas não precisa vestir o paletó, André, está tão quente, fique à vontade./ - Mas é assim que fico à vontade” (p.143). O vestir-se formalmente impõe um distanciamento entre André e Raíza, (re)veste o rapaz da figura do sacerdote, do professor de latim. Esta ‘máscara’ desempenha o papel de um escudo que se interpõe entre ele e Raíza, protegendo-o da fraqueza do homem. O gesto de (re)cobrir-se reafirma a cautela adotada por André e que se evidencia ainda nos “gestos lentos, medidos” (p.143) que executa, no modo “empertigado” (p.144) de sentar-se, no olhar inquieto. O jovem seminarista parece estar aguardando o momento propício para escapar da presença da moça. O comportamento esquivo do rapaz, o desejo de isolamento tornam-se mais evidentes a cada encontro com Raíza: na primeira visita da moça, a porta do quarto estava apenas encostada e a própria Raíza a abriu. André apareceu “sem paletó e sem gravata, [...] o colarinho aberto, o rosto úmido, recém-barbeado” (p.143) com uma aparência descontraída, desarmada. No segundo encontro, a jovem bate à porta e aguarda até que esta seja aberta. Por trás da porta, ouve o “andar atribulado” de André, percebe ainda que “a chave dá uma volta quase completa na fechadura” (p.171), movimento que prenuncia o completar de um ciclo, é a premonição de um tempo que se esgota. A porta chaveada é o primeiro movimento de defesa executado pelo seminarista. Também o aspecto físico do rapaz espelha mudanças: “ele estava mais magro, a barba crescida. Os olhos tinham um brilho de febre. [...] Parecia exausto” (p.171). 112 A aparência descuidada, o desgaste físico, o cansaço, são indicativos da perturbação de André. Sua intranqüilidade se traduz externamente na fala alta, no “riso demasiadamente forte para ser natural” (p.174), nos “lábios secos” (p.175). Excitado, movimenta-se de lá para cá, senta, bate com “os punhos fechados nos joelhos” (p.173), levanta, inquieto como um animal acuado. Suas “mãos exangues” (p.173) são símbolo da sua consumição, resultado da luta que vem travando consigo próprio. O esgotamento leva-o a falar em sacrifício, prenunciando um desfecho trágico. Na rua, o sentimento de ameaça é percebido na natureza: nela luz e trevas se defrontam, “no céu coberto pelas nuvens, o sol força sua passagem, banha a rua, enche os olhos [de André] de luz”. Mas por trás deste brilho pressente-se, “vem vindo uma tempestade” (p.178). Os sinais da tempestade adensam-se rapidamente: “o céu [parece] baixar, intratável” (p.179) e a ameaça de tormenta torna-se mais e mais próxima. Na noite que chega, “o vento ardente” (p.180) carrega o cheiro da borrasca. Esta se torna real no “raio [que estoura] próximo” (p.181), na luz que vai definhando até a escuridão cobrir todo o casarão. Sob o escuro da noite tempestuosa, acontece o terceiro e derradeiro encontro de André e Raíza. As forças celestes descendo à terra encontram-se com o homem envolto pela escuridão. Nela se deslocam seres maléficos representados na figura da “mulher de impermeável preto, [...] cara enegrecida, [...] sorriso esverdinhado” (p.181), cuja maleta, quando aberta, pode revelar tesouros e maldições, a vida ou a morte. Sob a influência das forças elementares, o “hálito [de André torna-se] escaldante” e seu ato de posse é seco, violento, áspero, seu beijo “arenoso” (p.183), suas “mãos de gesso” (p.182) lembram o giz, cujo cheiro, Raíza sentiu na sua primeira visita à casa de André. Mãos “com tantos ossos [...], ossos demais” (p.183) e nenhuma carne, nenhum afeto, apenas raiva. Raiva do ser que o desafia, que o desvia do caminho que se impôs. O desespero de André transforma-se em fúria, levando-o a ferir o ser que provoca a carne que há muito luta para anular. A violência do ato torna-o muito diferente da entrega amorosa imaginada por Raíza. Desse encontro resta apenas uma “lembrança [...] sem beleza, uma nódoa roxa” (p.183), mais nada. 113 Observa-se ao longo da análise da personagem André o seu anseio pelo isolamento, desejo referido por ele próprio, ao final da primeira visita de Raíza: “por ora, é melhor isolar-me um pouco para haver concentração no trabalho” (p. 146). O trabalho é a justificativa apresentada por ele para ficar só, para esconder-se. Residir em um bairro popular e distante, entre pessoas comuns, anônimas, ocupar o último quarto do corredor de um casarão antigo, cuja porta não contém a identificação do seu morador, são elementos que reforçam a idéia de fuga, de uma vontade de reclusão. O aspecto de cela do quarto em que mora denuncia esta vocação para o exílio, para o retiro, para a morte. O aspecto tenso e desconfortável que o jovem apresenta no seu relacionamento com os outros reflete-se nos móveis toscos, de aspecto heterogêneo. Estes simulam a figura do jovem que, sofrendo influência das várias leituras realizadas, é, no entanto, incapaz de sintetizá-las, de tirar delas lições que lhe amenizem a vida. Em razão disso, vive a fazer citações, difundindo lições não experimentadas, vazias de significado. Do mesmo modo, os móveis parecem não lhe pertencer, as roupas sugerem terem pertencido a um outro dono, a mesa em que trabalha, destoa do restante do quarto, revelando no seu aspecto – grande, severo e de bom gosto – o antigo dono, seu pai já falecido. Ao dar-se conta de que o seu esconderijo não é invulnerável – a própria Raíza abriu a porta do quarto na sua primeira visita –, André sente-se ameaçado. Sentindo-se perseguido, reage com violência ao Mal que a jovem representa. Extravasa assim o desespero e a raiva pela invasão do seu espaço. Seu modo de agir confirma a advertência de Patrícia: “André é pobre por dentro [...] , ele não tem quase nada para enfeitar suas paredes” (p. 157). Em sua ânsia por dominar suas emoções e sensações humanas, André acaba por secar sua capacidade de dar afeto. Passada a tempestade, do homem e da natureza, o vazio. Ao ser “petrificado”(p.184), sem emoção, resta o gesto derradeiro e libertador, o isolamento completo alcançado pelo suicídio e que separa, definitivamente, a essência da carne e o liberta do dever de viver preso à terra, para o qual não tinha vocação. 114 A atitude de André frente à vida sugere o ser que luta contra o ímpeto amoroso e a sensualidade, em favor do que sente pelas coisas divinas e espirituais. No seu desejo de sublimação, a personagem realiza o que Bachelard chama de “sublimação dialética”90, ou seja, o recalcamento de uma atividade ou função considerada impura visando a própria purificação, através de um desejo contínuo de emenda, cuja base é a supressão de um mal para a produção de um bem: André recusa-se os prazeres e emoções terrenos para alcançar as benesses divinas. Diante de luta tão insana, do ser humano que André foi, restou apenas “o nome lá no fim, retorcido e agudo como um pedaço de arame farpado” (p. 199) e o isolamento total e libertador: o suicídio. A decepção causada pelo encontro com André age sobre Raíza como um choque, despertando-a para a realidade. Dá-se conta de que o seu amor pelo seminarista não tinha a intensidade que imaginava, pois, “ele estava morto há tão pouco tempo que as flores do caixão ainda nem tinham murchado” (p. 203) e ela já se sentia tão calma como se os fatos se houvessem passado há muito mais tempo. “Um casarão pobre e limpo” é a frase que define a casa de André. Uma pobreza que parece estender-se ao íntimo do seminarista. Em André, o desejo de aprimoramento espiritual (limpeza, pureza) ‘seca-lhe’ o corpo, deteriora a carne, endurece as mãos que perdem o calor e a capacidade de transmitir afeto. A sua religiosidade é angustiada, permeada de dúvidas e de medos, a procura por Deus torna-se uma busca pesada e sufocante. A eterna vigilância sobre si próprio, a luta contra seus impulsos humanos acaba por conferir-lhe um aspecto árido, áspero que transcende no “cheiro-de-sala-de-aula”. O conflito árduo reflete-se na dureza e desconforto do quarto em que mora, tão desconfortável quanto sua posição diante da vida. A renúncia ao afeto, ao conforto físico e aos prazeres do mundo em troca da aproximação com o Divino não traz, no entanto, a paz desejada. Sua luta esvazia-se, torna-se tão contrária à vida que cansado sacrifica o corpo na derradeira tentativa de alcançar a luz. André falha em sua busca por Deus porque não é capaz de humanizar o sentido transcendente da vida. Não consegue transformar o seu desejo de amor em 90 BACHELARD. Op. cit. nota 78. p. 108. 115 algo fecundo, prazeroso, produtor de vida, transformando o seu percurso espiritual em uma luta desumana, em desespero para o qual a única saída é o atentado contra a sua própria vida. Mudando o suicídio para o sentido de sacrifício, o ato de André liga-se ao arquétipo do Filho, a Jesus Cristo, o fundador de uma nova lei, o instaurador de um mundo melhor de cooperação e solidariedade entre os homens. Assim, no texto, a morte da personagem pode ser identificada como o sacrifício que liberta Raíza da barreira que se interpunha entre ela e a mãe, rompendo com a condenação ao desencontro que parecia ter sido decretada desde o início do romance. 1 16 CONSIDERAÇÕES FINAIS 117 CONSIDERAÇÕES FINAIS Verão no Aquário narra, em 15 capítulos, a tumultuada travessia de Raíza da adolescência à maturidade. A forte ligação com a infância e à figura paterna, aliada ao distante relacionamento com a mãe, dificultam essa passagem. Fechada em si mesma, a narradora-protagonista encara as mudanças próprias desse período como uma ameaça ao tempo de felicidade e despreocupação vivido quando criança. Para deter o tempo e preservar sua infância, encerra-se em um aquário, nega-se a ver e a participar do mundo real. Mas o rodar inexorável do tempo foge ao controle da personagem, transformando o período em uma etapa confusa e tumultuada. Distanciada do referencial afetivo que poderia lhe dar suporte, a personagem vê-se envolvida por um mundo inseguro, ameaçado pelos rumores de guerra e pelas mudanças sociais. O mundo que cerca a protagonista está tão ameaçado pelas alterações externas quanto ela pelas mudanças internas. Para vencer a insegurança reinante, Raíza sente.mergulha ainda mais em si própria e, num misto de imagens de sonho e pesadelo, projeta sobre os objetos e no ambiente (espaço) que a cerca o medo que O espaço, segundo Bachelard, pode ser tanto algo palpável, concreto e mensurável como nas ciências matemáticas ou na geografia quanto uma idéia, um espaço imaginado, espaço alcançado pelo ser através do devaneio. Um espaço que pela imaginação, adquire novos contornos, amplia-se... impressões, sensações e lembranças associam-se a ele. Torna-se, então, um espaço habitado pelas vivências do ser, uma imagem da memória. Dentre os espaços habitados, a casa é o que concentra maior número de imagens em torno de si: é ao mesmo tempo um objeto (real) e uma essência (subjetivo), um bem e um sentido. Em Verão no Aquário, a casa é representação vital, acompanha o processo de maturação do ser, é parte dele e reflete as mudanças ocorridas na vida das 118 personagens. O desenvolvimento da protagonista é representado por um movimento circular que é apreendido na estrutura da narrativa. Os elementos espaciais, além de caracterizarem cada etapa do desenvolvimento da personagem, atuam ainda como indicadores do fechamento de cada um dos ciclos, desvendam os sentidos e estabelecem um elo de ligação entre as diversas fases da história da personagem. Conseqüentemente, instala-se no texto uma estreita relação entre espaço/personagem, entre a personagem e o mundo das coisas que é percebida no processo de espelhamento entre personagem e ambiente e no movimento contínuo de fim e recomeço, de morte e renovação sugerido entre os períodos da vida de Raíza. A recorrente percepção de que há um tempo que se esgota e de um novo que se inicia na vida da narradora remete ao arquétipo do eterno retorno, da renovação cíclica. As modificações psico-físicas vividas pela personagem emanam de um tempo “perdido na memória, [que em razão disso], tem a função de suspender o tempo”91 cronológico, que passa a ser medido pelas mudanças no entorno da narradora protagonista. “Há o tempo de amar”..., tempo em que todos os elementos parecem juntar- se em torno do ser que representa a potencialidade, o germe – a criança. O tempo de amar tem como representação espacial a “casa natal” – a chácara. Assim, a infância de Raíza marca-se pelo espaço aberto, amplo, pela espontaneidade, pela liberdade de ir e vir, tanto no espaço interno da casa quanto no externo, representado pela chácara e pelo jardim, como a sugerir as múltiplas possibilidades do seu devir. Nessa fase, a casa é plena de cosmicidade, com seus dois pólos – sótão (a transcendência) e porão (o concreto) – bem demarcados e equilibrados. O cenário paradisíaco remete ao arquétipo do jardim primordial no qual todos os elementos necessários ao bem- estar do ser eram colocados a sua disposição. Liga-se ainda à idéia da casa natal de Bachelard, definida por ele como um lugar “de calor [que] acolhe o ser, envolve-o [...] uma espécie de paraíso terrestre” em que o ser reina e que o “cumula de todos os bens essenciais, [...] mergulha-o no alimento”92 e fornece-lhe os “seres protetores”. 91 BACHELARD. Op. cit. nota 1. p. 28. 92 idem, p. 27. 119 Neste ciclo, a casa é VENTRE, é FONTE e REGAÇO – oferecendo calor, abrigo, aconchego e alimento. O espaço que cerca a criança é também pleno de sonho e magia e fortemente ligado aos elementos da natureza: à terra, (o berço primordial) e à água – “o sangue da terra”93. É pelo escassear do fluxo d’água da fonte que, ao recolher-se, leva consigo seres e paisagem, que se percebe o final da meninice de Raíza: seca a fonte, morre o pai, o princípio agregador e afetivo do ciclo. Ausentes a fonte e o regaço, desintegra-se a trindade do sótão: o pai retorna à terra que o formou, o tio, esquecido, integra-se às paredes da casa e Raíza desenraiza-se e parte para uma nova etapa. É chegado “o tempo de espalhar...” A insegurança, a movência marca o início da adolescência de Raíza. A morte do pai, com quem tinha uma forte relação afetiva, compensadora do afastamento materno, a separação da casa natal e a transferência da chácara para a cidade concorrem na instauração dessa instabilidade. Instabilidade que é percebida também na situação política do país ameaçado pelos rumores de guerrilhas. A esta situação somam-se ainda as transformações individuais decorrentes do amadurecimento biológico. O isolamento é a característica marcante desse período. Este está representado no espaço que se restringe, delimita-se, na casa que se eleva ao sétimo andar do edifício em que a protagonista mora. O estranhamento com o novo ambiente e com os hábitos citadinos fazem com que Raíza se feche, isole-se no interior da casa, transformando-a em REFÚGIO contra esse mundo percebido como desconhecido e ameaçador. Há o tempo de ferir... O isolamento, aliado à dificuldade em comunicar-se com a mãe, faz com que Raíza tente integrar-se, juntamente com Marfa, ao seu meio social. Adota o comportamento mais liberal dos novos amigos. No entanto, este se confronta com a educação recebida. A jovem tenta mascarar o conflito íntimo que se estabelece entre os valores herdados da família e os defendidos pelos amigos, mas essa tensão transparece no aumento da agressividade em relação à mãe, no seu desejo de feri-la e nos gestos repetidos de: examinar as unhas, umedecer as mãos com água-de-colônia ou “[lavar] as mãos furiosamente” (p. 163), como se tentasse disfarçar ou livrar-se de algo sujo que poderia ser 93 BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos: Ensaios Sobre a Imaginação da Matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 65. 120 percebido por um olhar mais atento. Tais gestos traduzem insegurança, medo. O medo é entrevisto também nas suas freqüentes consultas ao espelho, como se este pudesse revelar a culpa que sente pela sua maneira de viver. Fechada na casa, escondida em si mesma, a personagem transforma a casa em AQUÁRIO, cujo ‘peixe’ é a menina espontânea e sonhadora que acompanhava procissões e ouvia histórias ao pé do fogo. A sensação subjetiva de perigo, que as mudanças representam para a Raíza menina, evidencia-se na ameaça implícita que a personagem pressente no “peixe maior e escuro” que segue o “peixinho vermelho” (p.88) do aquário de Dionísia. A necessidade de proteção, experimentada por Raíza, transparece também no gesto que tem para com os peixes: “Tirei uma folha de alface do prato e mergulhei no aquário. Agora eles vão ter um esconderijo. [...] Eles estão muito expostos, os pobrezinhos. Se cometerem pecados, não têm nenhuma moita para se esconder” (p. 130). Protegidos pela folha de alface, os peixes podem disfarçar seus “pecados”: de maneira análoga, a protagonista faz da agressão e da ironia a ‘moita’ que esconde sua vulnerabilidade e a culpa que sente por seu ‘mau viver’. O calor denso e viscoso do verão reforça a sensação de aprisionamento num aquário, do nadar sem saída que Raíza sente. Apesar de haver tentado várias vezes afastar-se do grupo, a jovem acaba sempre retornando. Sente-se afundar num sorvedouro enquanto olha o mundo através do vidro da sua janela, o simulacro de um aquário. O aquário sugere uma profundidade, o mergulho na intimidade que, associado ao calor, pode ser a representação da queda no abismo – que Raíza associa ao seu modo de viver –, cujo final é o caos ou a morte. A morte da sua espontaneidade, da sua ingenuidade. Mas a “queda [pode ser] travada, amortecida em descida e converte seus valores negativos [...] em um caminho para o absoluto”94, na busca do bem-estar, do equilíbrio, que a personagem tenta encontrar ao afastar-se dos amigos. O rompimento é a única maneira vislumbrada por Raíza para dar uma outra dimensão ao seu futuro, de escapar de uma vida marcada pelo prazer dos sentidos, pela sexualidade. Fica “numa espécie de retiro espiritual [...] deixa de beber, deixa de fumar” (p. 154) faz da casa o seu CASULO. 94 DURAND. op. cit. nota 2. p. 202 e 203. 121 A casa/casulo permite a realização das transformações – a metamorfose – necessárias ao ser e também a Raíza para, amadurecida, sair do aquário/casulo e enfrentar o mar/mundo exterior, consciente da sua individualidade, sem deixar-se aniquilar por ele. Desse modo, a descida ao inferno transforma-se em caminho para subir, na esperança de realização que pensa haver encontrado no amor por André. É o “tempo de juntar...”. A saída do casulo é prenunciada pelo contato direto de Raíza com a rua, numa tarde iluminada pelo sol: mistura-se aos transeuntes, descreve seus moradores e as pessoas que nela circulam. Visita a prima no pensionato e tem para com ela, pela primeira vez, um gesto afetuoso: ao despedir-se: “[beijou-a] por entre as grades” (p. 139) do portão do pensionato. Vai à igreja, como que buscando reconciliar-se com valores transcendentes herdados de Dionísia. O solo que Raíza toca agora, não é verdejante, pleno de vida como o da chácara. Esta terra é encardida, seca, dura, áspera e pobre, como a vida dos que moram naquele bairro popular, em que homens e animais vagam abandonados pela rua. Lá, descobre o tormento de um ser, cujos impulsos mais saudáveis são amordaçados pela espiritualidade angustiosa, um ser em fuga do mundo. André, aprisionado entre dogmas e dúvidas, transforma sua casa em ESCONDERIJO, em CAVERNA, caracterizada pelo contínua luta entre a luz e a sombra, entre o Terreno e o Divino. É um espaço de resistência, vazio de conforto e acolhimento. A luta de sentimentos, vivida por André, explode na escuridão da noite de tormenta. O seminarista é libertado, afinal, pelo sangue oferecido em favor da paz interior, da fuga definitiva. A liberdade estende-se a Raíza, permitindo-lhe reconciliar-se com a mãe. A maturidade alcançada está representada pelo velho espelho do sótão que “se partiu [...] caiu em estilhaços” (p. 202), libertando-a da menina guardada no fundo de sua face de cristal. Assim, encerra-se definitivamente o ciclo despreocupado do sótão paterno e a personagem pode agora inserir-se no nível da vida comum, do ser adulto, a vida objetiva, prática, da sociedade burguesa e capitalista representada na mãe. O nascimento de Raíza para esse novo ciclo tem como ritual introdutório o banho de banheira, o arranjo das roupas e o copo de leite morno e doce – que 122 Raíza “[bebe] de olhos fechados” (p. 200) –, preparados pela mãe de voz doce e “espessa como o mel” (p. 198), a mãe há muito desejada. Os gestos rotineiros executados pela mãe lembram a preparação do banho de um bebê. Raíza faz-se criança outra vez, nasce para um nova etapa da sua vida, reconciliada com a mãe e consigo própria. Mãe e filha firmam um pacto: “nada de ficar guardando coisas aí dentro” (p. 199), nada de segredos, de coisas não ditas a atrapalhar o relacionamento que se inicia. Um beijo sela a promessa. Derrubada a barreira mental que separava as duas, inicia-se um novo ciclo.“Passara o tempo de odiar”. É chegado “o tempo de cicatrizar”... A integração de Raíza ao mundo adulto e à sociedade, dá à casa um novo aspecto: esta deixa de ser apenas fonte de bem- estar, de abrigo, para torna-se também um BEM FAMILIAR, um espaço de posse, o referencial de inserção social da protagonista. Da mesma maneira, a personagem perde seu caráter de promessa, de potencialidades a serem desenvolvidas, para assumir-se como ser de atuação e de realização. Conclui-se, então, que a casa desempenha, em Verão no Aquário, as várias funções do habitar referidas por Bachelard em su’A Poética do Espaço: é a FONTE que nutre o ser, dá a ele as condições para erguer-se e andar de forma independente. É REFÚGIO para o ser amedrontado, pode ser o AQUÁRIO, que aprisiona e destrói ou o NINHO que aquece e acolhe enquanto necessário. Para Graciana é a CONCHA que mantém intacta a sua ingenuidade de mocinha, permitindo a ela manter-se fiel à tradição familiar, guardar seus mortos e os tesouros dos antepassados. Oferece à personagem condições para isolar-se do mundo que a assusta. Para Patrícia representa o local de trabalho, o espaço que agrega todos os seres que dela dependem, os seres por quem vela. É também um local de espera: pela oportunidade, pelo momento, em que, amadurecida, a filha se faça criança e retorne ao regaço materno. A casa torna-se o lugar de acolhida, de bem-estar que permite exorcizar dores e fantasmas, ponto de partida para o reinício, para a nova tentativa de (re)construção. Fecha-se o ciclo. A casa volta a ser FONTE de aconchego e alimento – de leite e mel – é berço que a mãe embala. Verão no Aquário parece apontar um novo modelo familiar: no novo modelo sugerido, o pai, como no romance, desempenha funções tradicionalmente ligadas 123 ao elemento feminino. É ele que se ocupa da filha, é o companheiro de brincadeiras, conta histórias, despertando a imaginação e a fantasia e, ao mesmo tempo, transmite valores transcendentes, de crença nos próprios sonhos. Giancarlo, o pai, adquire o caráter sensível e frágil tradicionalmente atribuído ao feminino, é o princípio afetivo, o regaço. Patrícia, a mãe, representa o princípio da autoridade, da ordem. Cabe a ela cortar os laços entre pai e filha bem como o sustento do núcleo familiar. Mantém-se à distância, mas mesmo assim tudo parece girar em torno da sua vontade, da sua autoridade. É ela quem mantém o auto-controle nos momentos de crise, não demonstra suas emoções. Adaptada à sociedade capitalista, escreve romances de acordo com o mercado: com heróis idealizados, enredos exemplares, romances voltados para a fantasia inócua, para o lazer. O modo decidido, prático e um tanto autoritário é pressentido no ato de escolher, sem consultar, as roupas que Raíza deverá vestir, “nos gestos precisos” (p.203) com que as dispõe na cadeira. Ao final da narrativa, é a mãe, quem, sutilmente, sugere a Raíza a solução tradicionalmente destinada à mulher e anteriormente decidida pelo pai, segundo interesses econômicos e sociais: o casamento com o médico que tratou de Raíza: “- o Doutor Marcelo [...] é jovem mas tão experiente, tão sério. [...] Já telefonou hoje para saber notícias, ficou de vir fazer uma visita. [...] Receba-o você, filha, aparecerei depois” (p. 198 e 205). O homem escolhido por Patrícia para casar-se com a filha, parece assemelhar-se com ela própria: alia ao ato de cuidar o lado prático. A semelhança entre os dois está representada na maneira como Raíza os descreve: o Doutor Marcelo, “o homem de suéter preto e [cheirando] a eucalipto”, isto é, “com cheiro de árvore, a única misteriosamente firme em meio ao caos” (p. 198 e 197) que Raíza viveu logo após a morte de André. A imagem que Raíza utiliza para caracterizar o jovem médico é a mesma que usa para definir a nova imagem que tem da mãe: “encarei-a [...] pela primeira vez depois do que acontecera. [..] E senti tamanho bem-estar. [...] Ela era uma árvore também. Apertei-a com força” (p. 198). Firmeza, segurança e proteção no presente e no futuro são as sensações que um e outro transmitem à personagem. Ambos, diferentemente dela, parecem capazes de resistir as dificuldades e possuir a rigidez 124 suficiente para não se quebrarem pelas tormentas da vida, podendo, assim, auxiliá- la na construção do devir, apagando as marcas deixadas pelo período tumultuado que experimentou. Ao afastar-se do conturbado grupo social que freqüentava e recolher-se à casa, Raíza executa um movimento de escavação, ‘dobra-se’ sobre si própria, faz da casa o casulo protetor no qual pode encontrar o ponto de repouso/equilíbrio que lhe permitirá renascer/transformar-se. O ‘tempo de latência’ é também, para Raíza, um período de descobertas: das causas de sua insegurança e, principalmente, do (re)encontro com a figura materna. Ao final do verão, Patrícia ‘perde’ as características de ser idealizado, do qual Raíza só poderia tornar-se uma imagem deformada e imperfeita e ‘adquire’ o caráter humano. Torna-se, assim, a mãe que ama, protege e orienta que Raíza sempre buscou. A jovem descobre em Patrícia a solidão e a sensualidade da mulher, a fragilidade do ser humano presente nos ombros curvos, nos cabelos e nas mãos que denunciam a velhice que se aproxima. É esta imagem entrevista na mãe que permite a Raíza o tornar-se criança novamente e entregar-se aos cuidados maternos e observar, finalmente, no espelho sua imagem integrada à materna. Em Verão no Aquário tem-se a oportunidade de apreender o “drama da incomunicabilidade entre os seres, o medo da revelação do eu autêntico”95. Revela- se ainda a luta dos seres que, não conseguindo comunicar-se, utilizam-se do espaço como um espelho sobre o qual projetam e transmitem o seu modo de ser, fazendo do ambiente um meio de encontrar-se frente a frente consigo mesmo pelas relações estabelecidas entre si e as coisas. Desse modo, os lugares, os objetos, as roupas, os cheiros tornam-se índices, pistas para desvendar o ser escondido, interiorizado das pessoas/personagens, tanto no seu aspectos psicológico quanto no afetivo. Assim, a divisão imaginária da casa da chácara em dois mundos (um mais alegre, outro menos alegre) representa o modo de Raíza expressar o afastamento que se instaurou entre os pais desde aquela madrugada distante. Dentre os objetos que a cercam destaca-se o espelho. É na face dele, o olho do outro, que Raíza descobre a felicidade, a crítica e o recomeço, em igualdade de condições, ao lado da mãe. 95 COELHO. Op. cit. nota 9. p. 144. 125 BIBLIOGRAFIA ATAÍDE, Vicente de Paula. A Narrativa de Lygia Fagundes Telles. In: A Narrativa de Ficção. São Paulo: McGraw- Hill do Brasil, 1974. p. 91 - 111. AUERBACH, Erich. Mimesis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1994. ÁVILA, Henrique Manuel. Da Urgência à Aprendizagem: Sentido da História e Romance Brasileiro dos Anos Sessenta. Londrina: UEL. 1987. BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes,1998. ____ A Terra e os Devaneios do Repouso: Ensaio Sobre as Imagens da Intimidade. 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