A confissão animista de uma realidade felina: a Confissão da Leoa, de Mia Couto
Resumo
Embora as literaturas africanas sejam escritas em línguas europeias, expressam uma realidade
cultural diversa do contexto europeu, distanciando-se do cânone literário ocidental. Tendo em
vista essa relação de diferença, os aportes teórico-críticos baseados nas literaturas ocidentais
se apresentam impróprios para abordar as literaturas africanas. Amparado pelos estudos
culturais que oferecem uma abordagem ampla do texto literário, desvinculada das convenções
que por muito tempo intitularam-se universais, este estudo adota por referencial estético o
realismo animista, base das religiões africanas, para abordar suas literaturas. Essa proposta,
que vem sendo adotada por muitos investigadores dessas literaturas, é sugerida pelos próprios
pesquisadores e escritores africanos: no contexto lusófono, Pepetela (2015) e Henrique
Abranches (s.d.) e, no contexto acadêmico, as considerações do pesquisador Harry Garuba
(2012) e as reflexões de Sueli da Silva Saraiva (2007a, 2007b) sobre o assunto. Tendo por
pressuposto a noção de inconsciente animista proposta por Garuba, entendida como o tipo de
imaginário social em que estão baseadas as sociedades animistas, o realismo animista
configura-se como uma prática linguístico-social cuja estratégia de representação,
sinteticamente, reside na materialização do abstrato e do espiritual. À luz dessas
considerações é analisada a representação da personagem Mariamar em A confissão da leoa
(2012), do escritor moçambicano Mia Couto. Enquanto uma visão dissociada em concreto abstrato tenderia a uma interpretação metafórica da transformação “humana-felina” que
comporta a personagem, a perspectiva real-animista transcende o par
animalização/humanização para lê-la na sua presentificação textual.