Nem tão prósperos quanto calibanescos: paradigmas de identidade para a América Latina a partir de A Tempestade de Shakespeare
Resumo
O objetivo deste trabalho é refletir sobre a peça A Tempestade, de Shakespeare analisando sua relação
com o conceito de modernidade e seus discursos eurocêntricos, assim como sua relação com os paradigmas de
identidade surgidos na América Latina durante a segunda metade do século XIX. A relação metafórica que
escolhemos foi à surgida entre Caliban, Próspero e Ariel, e principalmente, as leituras que se fez sobre estas
alegorias. Caliban era um híbrido de homem e monstro, o molde disforme que representava a barbárie contida
em todo o imaginário europeu medieval. Próspero era o sábio e velho europeu, dotado de capacidades nunca
antes imaginadas por Caliban, sua cultura superior lhe delegava naturalmente o controle da ilha. Ariel era, a
exemplo de Caliban, escravizado por Próspero, mas gozava de outro tipo de escravidão, sua função era mais intelectual do que a de Caliban, notadamente a mão de obra servil do mago e sua filha. Em função disto, analisamos três dos principais paradigmas de identidade e projetos de modernização latino-americanos que foram de algum modo influenciados pelo texto Shakespeariano. Utilizamos os textos de Domingo Faustino
Sarmiento e sua obra Facundo de 1845, José Martí e seu ensaio Nuestra América, de 1891, e José Enrique Rodó
com Ariel, de 1900. Em Facundo, Sarmiento apresenta uma análise dos males da Argentina e do poder dos caudilhos, seus
vastos campos e sua incipiente população mestiça. Seu projeto de identidade é vinculado neste trabalho na
personagem Próspero de A Tempestade e é baseado na migração do excedente populacional europeu, que por
mestiçagem proporcionaria o branqueamento da população do pampa argentino. Em Ariel, Rodó propõe uma crítica ao positivismo vigente, ao pensamento identitário de Alberdi e à
nordomania que se espalha pelo Continente, tendo como paradigma de identidade à educação em favor da evolução do espírito e da latinidade como meio de barrar o utilitarismo estadunidense. Em Nuestra América, Martí faz um alerta em relação ao expansionismo imperialista estadunidense.
Contrariando as premissas identitárias da Generación del 37 especialmente Sarmiento propõe como paradigma identitário para o continente através da valorização do autóctone, da cultura e do passado existente nas sociedades mestiças. Neste contexto a América (tanto a latina quanto a anglo-saxônica) surge como o marco fundador da idéia de modernidade e não como artefato de seu desenvolvimento, também como a primeira identidade moderna em relação ao mundo moderno europeu colonial. Nesta relação identitária, os conceitos de civilização/modernização e barbárie/atraso são argumentos fundamentais para os discursos intelectuais que tem nos signos de cor e raça sua principal característica de identidade modernizadora.