Que justiça é essa? Aspectos teórico-metodológicos da investigação de representações discursivas da justiça em acórdãos de habeas corpus e cartas do leitor
Abstract
A vida em sociedade torna-se possível porque os seres sociais compartilham representações do mundo e da realidade em que vivem, por meio das interações dos atores em práticas sociais diversas. Algumas das representações construídas no seio
social acabam por organizar a própria sociedade, tornando-se fundamentais para a convivência humana. As representações de justiça são um exemplo. Nesse sentido, entender como as pessoas representam a justiça no seu dia-a-dia permite
compreender um pouco da dinâmica das relações que se estabelecem entre os indivíduos e instituições, além de refletir o potencial de mudança e de estabilização dessas representações em nossa sociedade. São, portanto, objetivos gerais desta tese a) investigar as representações de justiça que emergem das interações sociais em contextos culturais específicos; b) discutir o potencial de mudança e/ou de
estabilização dessas representações de justiça em nossa sociedade; e c) propor um método interdisciplinar de investigação-discussão das representações sociais. O
referencial metodológico utilizado é a Hermenêutica de Profundidade, proposta por Thompson (1995), que pressupõe três estágios de análise: sócio-histórica, realizada
com aporte teórico da Teoria da Estruturação e da Psicologia Social; formal/discursiva, realizada pelo viés da Lingüística Sistêmico-Funcional (taxionomia de van Leeuwen);
e interpretação/re-interpretação, realizada com base na Análise Crítica do Discurso. Este referencial metodológico mostrou-se adequado para uma análise crítica das
representações sociais. Para a investigação das representações de justiça, foram utilizados 470 acórdãos de habeas corpus, produzidos pelo Supremo Tribunal
Federal, no ano de 2005, e 66 cartas do leitor que continham a palavra justiça e suas derivadas, publicadas ao longo do ano de 2005 na Revista Veja. Os textos foram processados eletronicamente em busca da palavra justiça e suas derivações, que foram analisadas quanto ao significado assumido no contexto imediato da ocorrência e no contexto mais amplo da frase e do texto. Nessa etapa do trabalho, foram identificadas três formas de representação da justiça: a justiça-princípio, a justiça-bem e a justiça-instituição. Em seguida, passou-se à análise da recorrência dessas
representações, com vistas à identificação daquela representação mais presente na sociedade. Percebeu-se que a representação mais recorrente nas falas e discursos do
corpo social é a da justiça-instituição. Essa recorrência tem por objetivo delimitar espaços de atuação e responsabilidades, além de legitimar uma representação
altamente instável, com um imenso potencial de mudança. A justiça-instituição que se tem hoje pode ser desestruturada e reestruturada em um futuro próximo ou distante,
pois ela está à mercê das mudanças sociais. A justiça-princípio é também bastante recorrente no corpo social, no entanto, em sua essência, é uma representação
altamente estável; mudam-se os termos do acordo, mas não se muda o acordo. A literatura evidencia ser essa representação a mais antiga e os dados mostram que ela
é ainda muito presente na sociedade. Já a estabilidade ou o potencial de mudança da representação da justiça-bem, a menos recorrente no corpus, depende do corpo social e das instituições. Enquanto o corpo social e as instituições legitimarem os conjuntos de leis e normas que hoje constituem a representação, ela não mudará.