O romance dialético em José Saramago
Abstract
Os estudos acerca da obra de José Saramago, sobretudo no gênero romance, apresentam, geralmente, um enfoque no conteúdo político-ideológico representado nas narrativas. Temas como a questão da democracia, a hipocrisia dos setores sociais dominantes, o individualismo egocêntrico e de um utilitarismo pragmático, a violência, além do avanço de uma racionalidade dominada pela lógica do capital, enfim, a desumanização e a carência de uma política substantiva – críticas do autor enquanto cidadão – são transformados em matéria literária, na qualidade de reflexos e refrações do meio ideológico no qual o escritor estava inserido, especialmente em relação ao final do século XX e início do XXI. Certamente, tais conteúdos permitem diversos modos de compreensão, com base em diferentes teorias e métodos, justificando, naturalmente, múltiplos resultados hermenêuticos, o que contribui para a comprovação da riqueza polissêmica das obras do autor português. A partir da análise dos romances Ensaio sobre a cegueira, Ensaio sobre a lucidez e As intermitências da morte, juntamente ao cotejo com a crítica literária, propomos a tese de que o conteúdo axiológico refratado na prosa saramaguiana realiza-se em razão de uma estrutura, aqui delimitada ao enredo e à forma-função do narrador, da personagem e da ironia, eminentemente dialética – a qual assume a condição de princípio de construção estética. No plano dos enredos, a progressão das ações se dá dialeticamente, confluindo para um explicit textual e narrativo aberto, em devir, orientando – pela força da dinâmica do mundo ficcional – o leitor para que retorne ao incipit e às epígrafes, de modo a que se aperceba da aparência de harmonia e da essência de luta de contradições. Seguramente, a instância narrativa, a personagem e a ironia, partes de um todo estruturado, contribuem decisivamente para a realização do movimento contínuo e descontínuo do universo romanesco, uma vez que também formatados e funcionais pelo critério estético geral. Como um todo estruturado, a obra saramaguiana possui um princípio estético dialético e um postulado político e ideológico humanista-democrático, plenamente convergentes para a produção do sentido axiológico em causa do homem, da racionalidade, da liberdade e da responsabilidade, isto é, de um indivíduo ético em acordo com a sua eventicidade fenomenal. Enfim, a obra de José Saramago erige-se como um objeto-signo portador de uma carga axiológica em franco contraponto simbólico ao mundo da globalização e, pela objetivação da abstrata estrutura romanesca das narrativas, podemos aventar a necessidade de se considerar o princípio estético dialético como incontornável, seja para corroborar ou redimensionar aspectos de conteúdo, seja para compreender a posição artística e cidadã do escritor lusitano.